BURQUÍNI
“Nós, mulheres muçulmanas, somos sempre o alvo”
A BANHOS Uma muçulmana de burquíni tomando banho numa praia em Marselha, na semana passada FOTO REUTERS
É a combinação de burqa e biquíni, nisso todos concordam. A partir daqui, tudo o que rodeia o famigerado burquíni é controverso – os críticos dizem que é uma forma de apoiar o extremismo islâmico, os apoiantes defendem a liberdade de escolha da mulher. Falámos com Aheda Zanetti, criadora da polémica peça, que explica as origens do burquíni e como a proibição do seu uso na praia pode ter efeitos contraproducentes: “Os franceses precisam de um líder mais adequado e mais humilde que encontre a solução em vez de arranjar problemas”
TEXTO MARIANA LIMA CUNHA
Quando teve a ideia que a tornaria uma empresária famosa, Aheda Zanetti não estava a pensar em símbolos extremistas, confrontos violentos ou controvérsias políticas ao mais alto nível. Estávamos em 2004 e esta libanesa, que se mudou para a Austrália quando tinha apenas dois anos, assistia a um jogo de netball da sobrinha. A menina, de 11 anos, que jogava com calças e lenço na cabeça por debaixo do equipamento da sua equipa, estava nitidamente desconfortável com as roupas que vestia. “Parecia um tomate!”, recorda a tia.
Foi então que Aheda Zanetti teve a ideia de criar uma peça de roupa que fosse adequada para fazer desporto mas que não mostrasse demasiado o corpo feminino, para que pudesse ser usado pelas mulheres muçulmanas. Nascia o ‘hijoob’, com tanto sucesso que poucos meses depois Zanetti criava a sua empresa, a Ahiida, e lançava a versão confortável de um fato de banho para mulheres muçulmanas, o agora controverso burquíni.
A ORIGEM Aheda Zanetti dando os últimos retoques no burquíni que criara, envergado pela manequim australiana Mecca Laalaa, em Sydney, em janeiro de 2007 FOTO GETTY
“Não o criei para que as mulheres se sintam bonitas, mas por razões práticas”, esclarece Zanetti ao Expresso, numa altura em que este cruzamento entre fato de banho e lenço islâmico (compará-lo ao véu seria excessivo, uma vez que o burquíni deixa a cara, as mãos e os pés da mulher destapados) invade as capas dos jornais. O raciocínio foi simples: Aheda recorreu a um dicionário, consultou as definições de burqa (um véu que cobre a cabeça e o corpo) e de biquíni (um fato de banho composto por duas peças) e criou o burquíni, ou burkini, embora admita que a peça não tem muito a ver com a burqa original – e que por isso o termo pode estar a ser mal interpretado.
“O burquíni não simboliza sequer alguém que é muçulmano, mas alguém que é livre e gosta de aproveitar a vida”, assegura Aheda, que acusa os políticos franceses de interpretarem erradamente o significado da peça de vestuário – e de assim estigmatizarem os muçulmanos no país. Esta quinta-feira, o mais alto tribunal legislativo de França vai decidir sobre a manutenção da proibição do burquíni, que ficou decidida recentemente em 15 cidades costeiras do país e deu origem a graves confrontos nas praias francesas.
Como e onde começou a polémica
A polémica começou quando cidades como Nice e Cannes decidiram aplicar decretos contra a utilização de “roupas que manifestem a adesão a uma religião numa altura em que França e lugares religiosos são um alvo para ataques terroristas”. Desde então, pelo menos 24 mulheres já foram obrigadas a despir-se ou a abandonar as praias em que se encontravam – se não o fizerem, correm o risco de pagar uma multa que ascende aos 38 euros.
Um dos casos mais controversos deu-se esta segunda-feira, quando uma surgiram na imprensa fotografias de uma mulher na praia de Promenade des Anglais, em Nice – precisamente o palco da tragédia de julho passado, quando 85 pessoas morreram vítimas de um atentado terrorista. Nas imagens, a mulher, que vestia um burquíni, é abordada por quatro polícias armados e parece despir-se enquanto um deles passa uma multa.
Confusão e tensão na praia
No mesmo dia, um caso semelhante ocorreu em Cannes e exaltou os ânimos, quando uma mulher de 34 anos que fazia praia com a família, vestida com leggings, uma túnica e um lenço na cabeça, se viu multada por usar roupa que “não respeitava bons valores e secularismo”, conforme citado pela AFP. A mulher, que se identificou apenas como Siam, esclarece que “não estava de burquíni, ou de burqa, ou nua, por isso considero que estava vestida de forma apropriada”.
Enquanto a filha de Siam chorava, um grupo de cerca de dez pessoas apoiou a família, enquanto outro grupo de banhistas bradava insultos e a mandava “voltar para casa”. Não são casos únicos: com a controvérsia do burquíni estarão ainda relacionados os casos de confrontos e violência em Sisco, Córsega, onde cinco pessoas ficaram feridas e cerca de 200 pessoas, na sua maioria de origem norte-africana, marcharam entoando as palavras de ordem “Esta é a nossa casa”.
FOTO REUTERS
Não se sabe se a proibição se vai manter – o caso será julgado esta quinta-feira em resposta a um apelo da Liga dos Direitos Humanos, depois de um tribunal de Nice ter aprovado a decisão de Villeneuve-Leubet, a primeira zona a proibir os burquínis. O tribunal de Nice considerou a proibição “necessária, apropriada e proporcional” para prevenir perturbações da segurança pública, considerando que a peça de vestuário pode “ser entendida como uma provocação, exacerbando tensões”.
Não é nova moda, é projeto político
Se é verdade que os decretos implementados em França não referem a palavra burquíni, preferindo proibir “roupa de praia que ostensivamente mostre afiliação religiosa” para proteger a segurança, o secularismo e a higiene, a verdade é que o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, já veio dizer que apoia a proibição e que a peça “não é compatível com os valores de França e da República”. “O burquíni não é uma nova moda entre a roupa de praia”, disse Valls, recusando aplicar a proibição a todo o país. “É a expressão de um projeto político, baseado em boa parte na escravização da mulher”.
Declarações como esta ou como as do novamente candidato presidencial Nicholas Sarkozy, que entende o burquíni como uma “provocação”, enfurecem Aheda, que recorda que a peça “não serve apenas para muçulmanas nem é um símbolo do Islão”, preferindo sublinhar as oportunidades que o burquíni traz às mulheres que o usam: “Liberdade de escolha, flexibilidade de movimentos e a confiança de que pode sair de cabeça erguida e aproveitar o que a vida tem para lhe oferecer”.
“Perdemos tanto quando éramos crianças… Escolhemos não usar roupas curtas na escola, não fazer desporto. Não quero que as nossas crianças percam nada”, enfatiza Aheda, explicando que embora estas sejam vantagens para as meninas muçulmanas, há razões para uma vasta clientela aderir ao burquíni: “Pode ser para pessoas alérgicas ao Sol, sobreviventes de cancro da pele, pessoas que não se sentem bem num biquíni…”. Por isso – e por causa da polémica, que diz ter sido “fantástica para as vendas” -, o negócio corre melhor do que nunca: “Agora, estimo que 90% das encomendas que recebo não são de muçulmanas. As mulheres por todo o mundo estão unidas”.
A parte mais grave de toda a polémica gerada à volta do burquíni, garante Aheda, são os efeitos contraproducentes da proibição. “Estão injustamente a culpar o vestuário de alguém por ameaças terroristas. Quem sofre mais com a proibição é a mulher muçulmana, o que é muito perturbador. Nós somos sempre o alvo. Somos pessoas humildes e agora sentimos que temos sempre de provar que somos boas pessoas. Não temos culpa de que haja criminosos”.
A empresária não é a única a pensar assim – dentro e fora de França, críticos da decisão temem que a proibição resulte como um trunfo para o autoproclamado Estado Islâmico. No Canadá, onde em regiões como o Québec políticos regionalistas pedem a adoção dos mesmos decretos, o primeiro-ministro, Justin Trudeau, garante que é necessário mostrar “respeito pelos direitos e escolhas individuais” e ir além da tolerância para garantir “aceitação, abertura, amizade e compreensão”.
Feiza Ben Mohamed, porta-voz da Federação Muçulmana para o Sul de França, é da mesma opinião, considerando “escandaloso sugerir que o burquíni é um problema de segurança. É uma vergonha confundir terroristas com o resto da comunidade muçulmana”. A porta-voz recorda que “as islâmicas extremistas nem sequer se misturam com mulheres em biquíni”, sendo que assim a medida só prejudica islâmicas moderadas e mulheres que querem levar os filhos à praia: “Estão a fazer o trabalho pelo recrutamento do Daesh ao fazer os jovens crer que são estigmatizados e excluídos”.
“Os políticos estão a dividir as pessoas, e é a pior decisão que podiam ter tomado”, lamenta Aheda, frisa “amar a Austrália” por que o país sempre a aceitou: “Quanto mais deres, mais vais receber em troca”. Sobre os líderes de França, em particular Manuel Valls, é sucinta: “Os franceses precisam de um líder mais adequado e mais humilde que encontre a solução em vez de arranjar problemas”.
França é um dos países com legislação mais severa em relação ao uso de símbolos religiosos – o país já proibiu o véu islâmico que tapa a cara da mulher na totalidade, argumentando que este esconde a sua identidade, e os hijabs nas escolas e em serviços públicos; já Sarkozy deseja banir os lenços na cabeça mesmo em universidades e empresas privadas. À volta do mundo, países como a Bélgica, Chade e Congo proíbem o véu inteiro (a Síria proíbe-o nas universidades, o Kosovo e o Azerbeijão nas escolas), mas vários outros ponderam legislar no mesmo sentido (Egito, Holanda, Tunísia e Alemanha são exemplos).