GRANDE ENTREVISTA A CLÃ
“Será que ainda vale a pena continuar a lançar discos?”
CLÃ O grupo comemora os vinte anos de edições discográficas com uma coletânea de vinte canções
Esta não é apenas uma entrevista. É uma viagem ao interior dos Clã, com passagem pela memória das primeiras canções, dos primeiros concertos, das radicais mudanças na indústria da música, ao ponto de surgir a dúvida sobre se ainda vale a pena lançar discos, ou, até, dos detalhes responsáveis por canções que se tornaram grandes sucessos terem estado na iminência de ficarem de fora
TEXTO VALDEMAR CRUZ FOTOS RUI DUARTE SILVA
A pretexto do lançamento, na próxima sexta-feira, de uma coletânea com vinte das grandes canções criadas pelo grupo desde o primeiro disco, editado há vinte anos, fomos a Vila do Conde e ali, no meio de uma pequena quinta onde há vários anos construíram um estúdio de gravação, estivemos horas à conversa com Pedro Rito, Hélder Gonçalves, Manuela Azevedo, Miguel Ferreira, Pedro Biscaia e Fernando Gonçalves. Agora com idades compreendidas entre os 44 e os 49 anos (há quatro com 46 anos), constituem os Clã, um dos grupos mais marcantes das duas últimas décadas em Portugal. Pelo rigor, pela singular proposta estética contida nos seus trabalhos, pelo modo como nunca se acomodaram ao sucesso conquistado, pela capacidade de rasgar caminhos novos, pela vontade de não se deixarem acondicionar em fronteiras estreitas. Uma editora convidou-os a fazer uma coletânea do que podem ser as melhores canções dos seus vinte anos de carreira. Discográfica, que a carreira musical é bem mais longa. A escolha está feita, mesmo se a última das preocupações do grupo seria deter-se a deitar um olhar sobre o passado. Interessa-lhes o futuro. A possibilidade de continuarem a construir algo de novo e diferente. Até ao dia em que considerem nada mais ter para dizer. Afinal, nada é eterno. Mesmo se há uma óbvia eternidade no prazer proporcionado pelas suas canções.
Como surge a ideia de terem um estúdio próprio?
Hélder Gonçalves (H.G.) - Precisávamos de ter algum controlo sobre o nosso trabalho e independência para fazer as coisas da melhor maneira para nós. Era muito importante podermos passar o tempo que quiséssemos à procura da música que queremos. A alternativa era estarmos sempre na mão de um orçamento ou de uma editora, com três ou quatro dias para gravar. O nosso processo de elaboração de um disco é muito lento. Precisamos de três ou quatro meses só para o tempo da gravação. Fora a composição.
Só há vantagens nesta opção?
H.G. - É muito prático começar a compor e já estar a gravar. Mas claro que tem desvantagens. Há aquela sensação de que podes sempre melhorar. Num estudado alugado, pago à hora, tens de ser mais efetivo. Aqui damo-nos ao luxo de experimentar muito mais. Sempre fiz isso um pouco. Tentar sempre colocar tudo em causa. Tentar descobrir todo o tipo de soluções, para que a que encontramos seja a que melhor favorece a música.
Com a crise que entretanto afetou a indústria, passou a ser ainda mais difícil para os músicos terem esse tempo de estúdio?
H.G. – A crise, para nós, não alterou muita coisa. À nossa volta sim. Houve editoras e agências que foram à falência ou diminuíram as equipas. A nossa editora era gigantesca e agora trabalham lá três ou quatro pessoas. Com a construção do estúdio, não antecipando o futuro, o futuro veio justificar a decisão certa de sermos independentes.
Manuela Azevedo (M.A.) - O que se alterou bastante, e nisso há coisas boas e más, é que passámos a ter de fazer trabalhos que eram das editoras e das agências. Rouba-nos tempo precioso para fazer música. Além de não sermos especialistas. Falamos do mais básico, como colocar um rótulo no CD com o preço para ir para uma loja.
Pedro Rito (P.R.) - Discordo um bocadinho. A crise na música já existia antes da crise económica de 2008. Já havia uma crise editorial. O MP3 despoletou uma série de coisas, nomeadamente a crise dos discos. Depois a crise económica teve impacto, naturalmente. Em plena crise andávamos em tournée com o Cintura (2007/8) e era a fase faustosa do meio. Os cachets eram grandes, os espetáculos tinham cenografia cuidada, sem olhar a gastos.
Miguel Ferreira (M.F.) - Também depende de que mercado se está a falar. Nos auditórios tivemos de ter cuidado com os custos e investimentos.
P.R. - Sim, sabíamos que podíamos arriscar concertos de inverno nos auditórios com cachets menores porque o verão pagava as contas. Com a crise, necessariamente toda a sociedade teve de nivelar e nós também. Os espetáculos já tinham de ser pensados de outra maneira.
No meio de tudo isso acontece a falência dos formatos, primeiro do vinil, depois do CD, depois do MP3. Como lidaram com isso?
H.G. - É mais que isso. É a falência da venda da música, mesmo virtual.
P.R.– A venda da música pagava os custos de produção.
H.G. - Hoje sabes que não vais vender discos.
M.A. - A editora olhava para o bolo global e concluía que, tendo vendido muito Amália, por exemplo, ainda tinha dinheiro para, mesmo que corresse mal, poder fazer um orçamento para os Clã, que estão a começar. De repente, as editoras deixaram de ter esse papel de alimentar carreiras, de apostar em artistas.
H.G. - Passámos pelos processos todos. As maiores mudanças foram nos últimos 20 anos e estávamos lá. Percebemos este caminho todo e sabemos que estamos num ponto que é a meio do processo. A crise económica foi importante, mas é passageira. A mudança de modelo e a alteração real da forma como as pessoas ouvem música é o mais importante. Podemos dizer que as editoras e agências se atrasaram a perceber isso, mas não adianta muito. O modelo mudou e nós artistas temos de continuar a tentar perceber como nos encaixamos neste modelo continuando a fazer aquilo que gostamos de fazer. Essa é que está a ser a luta.
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— Sandra (@sasealves) 3 de janeiro de 2016
Continua a valer a pena lançar um disco?
H.G. - É uma questão que colocamos a nós próprios. Já no último disco ficámos a pensar nisso.
M.F. - O meio da marcação dos concertos ainda depende do disco físico. Os promotores ainda gostam de ter a bolacha, ter a capa, ser namorados.
P.R. - Se não houver um disco novo, é difícil. Esta mudança de paradigma fez com que nunca houvesse tanta música para ouvir. É tipo os canais de TV - passas mais tempo a fazer zapping do que a parar no programa.
M.F. – Dás menos hipótese aos discos.
P.R. - Ouço duas ou três músicas deste ou daquele disco, mas depois, se calhar, nem tenho tempo para ouvir o resto. Os músicos continuam a fazer discos, quando os consumidores nem lhes dão essa atenção.
H.G. - Para mim, a razão principal é porque é algo que temos necessidade de fazer. Estamos nessa fase de começar a compor para um disco novo. Não consigo fazer uma coisa que não seja um álbum. Penso no conceito, no tipo de som, no tipo de letras que quero. Tento afunilar as coisas para haver um conceito. De repente dizem que vamos só fazer uma ou duas músicas. Isso é como tirar-me o tapete. Basicamente, estamos numa espécie de dúvida-limbo, que acaba sempre por ser resolvida com o trabalho, com as canções. Podíamos fazer na mesma um trabalho novo, não gravar o disco e ir para a estrada. Já pensámos nisso várias vezes. Mas não sei se na prática o meio está preparado para promover uma coisa dessas ou se as pessoas estão preparadas para comprar bilhete para um concerto de um grupo de que não conhecem nenhuma música. Teríamos de arranjar uma solução promocional para resolver este problema.
P.R. – Não sei como é que o disco físico ainda existe. As pessoas ouvem na rádio, no Spotify ou no Youtube. Não é a mesma coisa, mas não podemos ir contra o tempo. Não percebo como posso convencer um filho meu a andar com um aparelho que só tem dez músicas quando no telefone tem tudo.
H.G. - Há muitos formatos. O CD é um deles, mas é interessante, porque tem melhor som. Eu continuo a comprar, tal como muita gente. Se calhar fazíamos uma edição de 10 mil discos na primeira edição e agora fazemos de mil. No nosso caso fazemos cinco mil. Mas muitos nossos colegas fazem mil e já é muito.
Pedro Biscaia (P.B.) - Há grupos que lançam várias versões do mesmo trabalho. Os Radiohead lançaram agora o último disco com a versão MP3, a versão wave. Tudo a preços diferentes. Também há a versão CD, versão vinil colecionador.
recomendada com força!
— Fernanda Takai (@FernandaTakai) 1 de dezembro de 2013
Clã - Competência Para Amar (ao vivo) http://t.co/VAB8rwjfZM
Se aparecessem agora iriam ter uma vida mais complicada do que a que tiveram no vosso início, até por quase ter acabado a venda de discos e reinar agora a escuta em plataformas digitais?
P.R. - Continua a haver músicos novos portugueses. Uns furam, outros não. Os novos formatos não são um impedimento, nem a realidade das editoras. Há muitos sucessos na mesma. Sempre houve esses fenómenos.
H.G. - Havia abertura para coisas mais alternativas, que não tinham tanto sucesso, mas tinham espaço para concertos. A diferença agora é que esse espaço já não existe. Há os fenómenos e depois já não há espaço para mais ninguém. Mesmo artistas novos, bons, que fazem discos interessantes, têm dificuldade em tocar, aparecer.
M.A. - Muito bom para nós, ainda antes de termos um contrato editorial, foi a possibilidade de tocar. Havia espaços onde se podia fazer concertos. Isso foi importante para criar experiência e aprender. Parece-me que em Portugal agora não é tão fácil ter esse circuito de pequenos concertos, bares com música ao vivo. Quando fizemos a primeira digressão, não tínhamos um disco, não tínhamos promoção. Éramos só nós com uma maquete. Conseguimos, indo aos sítios que organizavam concertos, fazer espetáculos.
P.R. – Mas agora há uma rede de teatros que funciona e não existia no nosso tempo. Há uma série de festivais. Mudaram os sítios, mas continua a haver hipótese.
H.G. - Se aparecêssemos agora ia valer o que continua a valer, que é termos de aparecer com música forte, que chamasse atenção. A diferença, hoje, é, depois de fazermos isso, como é que nos mantemos. Vemos muitos artistas muito bons a aparecerem e que não conseguem manter-se. Não conseguem ter uma banda e acabam por desistir e fazer outra coisa.
O que é que pretendiam quando apareceram?
H.G. – Queríamos tocar. Acreditávamos que tínhamos algo de novo. Especialmente quando começámos, em que a música portuguesa vivia muito do pop/rock. Havia os Delfins, os Xutos. Os GNR estavam em grande. Nós quisemos fazer algo de diferente, até porque eu vinha da área do jazz.
M.F. - Havia esse movimento alternativo do acid jazz, que concorria no alternativo com o grunge, e havia sítios no Porto para tocar.
H.G. – Eu tinha feito uma viagem a Londres nos anos noventa e ouvi muito acid jazz nos bares todos. Também ouvi soul antigo. Foi a primeira vez que ouvi ao vivo músicas que já conhecia. Stevie Wonder, Aretha Franklim. Aconteceu num bar em Londres. Foi fantástico. Só ouvia aquilo em discos em casa. Foi isso que me motivou a fazer o trabalho que fizemos no início.
E a fazê-lo em português…
H.G. Sim, em português. O que aconteceu também é que começou a aparecer muita gente nessa altura com esta perspetiva de sair fora do rock normal. Apareceram mais alguns grupos, apareceu o Pedro Abrunhosa, os Cool Hipnoise. Esta ideia do hip-pop e do acid jazz foi sempre uma muleta para chegarmos às canções. Descobrimos, depois de ter lançado o primeiro disco (LusoQUALQUERcoisa-1996), que tínhamos um caminho mais fácil para chegarmos onde queríamos. Depois do primeiro disco, não tocávamos. Apesar de termos as nossas músicas a passarem na rádio, não apareciam concertos. Ensaiávamos muito. Continuámos a trabalhar as músicas, a mexer, a pô-las de cabeça para baixo, a trabalhá-las de outra forma. Explorávamos outros caminhos. Tudo culminou num concerto na Antena 3, que era para ser mais acústico, mas não foi. Fizemos ali versões de músicas que tínhamos acabado de lançar há meio ano. E estreámos algumas músicas que fizeram parte do segundo disco. Quase diria, sem renegar o LusoQUALQUERcoisa, que o Kazoo (1997) é de alguma forma o nosso primeiro disco. Quase tudo o que faz parte do primeiro disco foi algo que partiu de uma ideia, de um conceito inicial na minha cabeça. Depois juntei o pessoal para que tocassem aquilo que eu tinha imaginado. A partir daí é que se começa a fazer algo em conjunto.
M.F. - E acontece o encontrar a voz .
P.R. - Sim, foi quando a Manela começou a cantar. Isso é muito importante. Nem estou a falar do primeiro disco, falo mesmo dos primeiros ensaios. Era um grupo de acid jazz, que tinha uma componente instrumental muito grande e uns vocalizos. Umas frases soltas. No segundo disco há uma erupção da banda, do cantor. Tudo muito mais assumido.
H.G. - É uma espécie de revelação nesse caminho.
M.A. - Não é só especificamente a voz humana que se descobre aí. É mesmo a maneira de os sons se encaixarem uns nos outros. Há muito da personalidade sonora da banda que se descobre aí.
P.R. - Lembro-me quando a Manela começou a cantar. Veio para o Kazoo, estávamos a ensaiar, e a Manela começa a cantar aquilo. Parámos e ficámos todos a olhar. Aí senti que tínhamos essa coisa especial.
H.G. - Se o primeiro disco tivesse sido um grande sucesso de público e concertos, podíamos correr o risco de achar que éramos os maiores. Assim, foram sempre umas vitórias mais pessoais. Com o Kazoo, quando começámos a tocar e tínhamos muita gente a cantar uma música como o “Problema de Expressão”, sentimos que estava a correr bem, porque as pessoas estavam a perceber o que estávamos a fazer.
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Como esse grau de exigência em relação aos textos, que queríamos que fossem em português, surgiu desde início, sentimos logo no primeiro disco a necessidade de pedir ajuda
E a questão do cantar em português e da escolha muito cuidada das palavras?
M.A. – Foi deliberado. Uma coisa importante na história dos Clã, que pode ter tido como consequência demorarmos mais tempo a gravar discos e a concluir canções, é sermos exigentes. Começou mais pelo lado do Hélder, que era o chefe da banda e era muito rigoroso a todos os níveis. Seja a nível musical, em relação com o que devíamos tocar e fazer, mas também ao nível das palavras. Foi assim desde o primeiro disco. Esse espírito crítico, essa exigência, acabou por se tornar uma forma de trabalho de toda a banda. Gostamos de fazer as coisas bem feitas, nem que isso implique mais tempo. Como esse grau de exigência em relação aos textos, que queríamos que fossem em português, surgiu desde início, sentimos logo no primeiro disco a necessidade de pedir ajuda. O Hélder compunha tudo e também escrevia. Não se sentia satisfeito com alguns textos que tinha. Na altura estávamos a trabalhar com o Mário Barreiros, que nos ajudava na produção das maquetes. Ele falou-nos no Carlos Tê e foi a melhor coisa que nos podia ter acontecido. Não só conhecemos uma pessoa fantástica - é também a maneira como olha para a música, para as canções, a forma como escreve. Foi muito importante tudo o que aprendemos nesse processo e tudo o que ganhámos em termos de letras que fazem parte do nosso reportório. Depois, não dava para voltar atrás.
P.R. – A exigência das letras foi sempre grande, ao ponto de termos músicas boas que nunca puderam andar para a frente porque nunca encaixou lá a letra. Temos muitos casos desses.
M.F. - O “Sopro do Coração” ficou até à última. Estava pronta no Kazoo, só que não tinha letra.
M.A. – O “Problema de Expressão” esteve por uma unha negra por causa de um detalhe da letra. Se não tivéssemos descoberto a solução dela, não a tínhamos posto no disco. Era uma coisa pequenina. Era um artigo. “Só para dizer que amo.” Era como estava inicialmente escrito. Aquilo não soava bem.
H.G. - Soava piroso, muito lamechas.
M.A. - Ficava uma coisa muito poética. Era daquelas coisas vagas, abstrato-poético-coiso, mas que não diz nada.
H.G. - Depois o Tê pôs-lhe o “te” e apontou logo a música. Foi decisivo. Ficou “só para dizer que te amo” e isso fazia toda a diferença. Cada vez dou mais importância às palavras, e temos várias pessoas a escrever, mas com todos é diferente. Com o Sérgio Godinho, por exemplo, com quem já fizemos muitos trabalhos, ele quer sempre que eu mande a música primeiro, mesmo que eventualmente não esteja completa. O Tê prefere mandar letras para eu depois compor.
CLÃ Hélder Gonçalves, Manuela Azevedo, Miguel Ferreira, Fernando Gonçalves, Pedro Biscaia e Pedro Rito
Em todos estes anos, o que mudou na organização dos concertos?
H.G. - Em muitos casos faz-se quase uma curva ao contrário. Enquanto a indústria caiu, no caso dos concertos, da qualidade, da organização dos materiais, isso evoluiu tudo bastante. Quando começámos havia poucas empresas a fazer som, por exemplo. Portugal sempre foi um país muito bem servido nesse aspeto, ao contrário de Espanha ou Brasil. Já temos festivais há muitos anos. Temos nesse aspeto um nível muito alto. Às vezes achávamos que éramos muito chatos, porque fazíamos muitas exigências mas isto foi muito importante para que as cosias evoluíssem. Não tocar de qualquer maneira foi decisivo para nós. Não porque sejamos divas. Sempre investimos muito na ideia de o espetáculo ser o melhor possível. O nosso técnico de som é o mesmo há praticamente 20 anos.
P.R. - É uma exigência de que não prescindimos, abdicando muitas vezes das nossas remunerações para que o espetáculo seja garantido. O mais importante é que o espetáculo chegue bem às pessoas. Tínhamos técnico de som, técnico de luz, roadies, numa altura em que ninguém tinha nada disto. Com outros, os concertos atrasavam, paravam a meio, o som era horroroso, o som de palco não prestava. Era com tudo isso que achávamos que as pessoas não tinham que levar. Foi sempre um investimento nosso.
Ainda assim, tiveram maus concertos?
H.G. – Há um que foi um desastre. Foi o concerto na festa do jornal “Sete”. Foi feito em condições estranhas.
M.A. - Estávamos no sítio errado.
H.G. - Éramos muito inexperientes.
M.F. - Era difícil ouvirmo-nos suficientemente bem para podermos tocar bem.
P.R. - Muitas vezes, nos pavilhões das queimas das fitas o desconforto era enorme. Quase nem nos ouvíamos. Mas como estávamos muito bem ensaiados, tocávamos. Tínhamos as pessoas em delírio e nós em sofrimento. Correu mal, porque não nos divertimos, mas correu bem para as pessoas, porque se divertiram. Depois começámos a recusar determinados espaços. Porque não havia garantia de bom espetáculo.
H.G. - A nossa música também vive de pormenores. Um “power rock” funcionaria mais coisa menos coisa. Achamos que é muito importante perceber-se tudo. Temos essa tendência de tentar que corra o melhor possível. Temos a fama de sermos muito bons ao vivo, mas não foi sempre assim. Apesar de ensaiarmos muito e trabalharmos muito, quando íamos a palco tínhamos muitos fantasmas. Até descobrirmos o click de como é que se faz isto, demorou um bocadinho. Só para aí no segundo disco é que começámos a perceber.
P.R. - Somos muito críticos e exigentes. Havia um ritual. No fim, juntávamo-nos e discutíamos o que tinha corrido bem ou mal.
M.A. - Às vezes ouvíamos a gravação, mas a discussão mais importante é aquela que é feita a quente mal sais do palco. O que se passou? Porque é que esta música não funcionou?
M.F. - Já aconteceu acharmos que correu muito mal e, depois, com a gravação vimos que afinal não tinha corrido assim tão mal. Aconteceu isso com o Afinidades.
I added a video to a @YouTube playlist https://t.co/BeAsuk8Csy Clã - "Conta-me Histórias"
— Hugo Alexandre Cruz (@hugoalexandrecr) 24 de julho de 2016
E quais são os concertos memoráveis?
P.B. - O da Expo foi memorável.
M.F. - Tocámos o “Problema de Expressão” e foi a primeira vez que tivemos tanta gente a cantar uma canção nossa. Foi o primeiro arrepio. Foi dentro da Expo, mas era o Super Rock.
P.R. - O primeiro concerto, no Meia Cave, foi memorável. Demorámos muito tempo a prepará-lo.
M.A. – Esse concerto tem duas coisas em comum com o da Expo. Por ser o primeiro da banda e no da Expo por ser o primeiro num grande palco com muita gente a cantar. No da Expo também não tivemos muitas condições Não fizemos ensaio de som. No primeiro concerto também não fizemos ensaio porque o Mário Barreiros ficou preso no meio do trânsito por causa de uma derrocada na marginal do Douro. Estávamos muito nervosos.
P.R. - Não foi um concerto que apareceu porque tínhamos uma ‘bandola’. Preparámo-nos na sala de ensaios e organizámos uma tournée de apresentação. Andámos um ano a prepararmo-nos.
M.A. – Foi a 15 de janeiro de 1994, no Meia Cave. Eu digo estas datas com confiança, mesmo se às vezes não está certo.
P.B. - Outro memorável foi em Madrid, na Sala Taboo. Estávamos expectantes sobre como o público iria reagir.
M.A. – Chegámos à sala depois de comer qualquer coisa e tinha fila à porta.
H.G. - Vilar de Mouros foi histórico. Toda a gente se lembra do nosso concerto lá. Porquê? Começou a chover e nós tocámos. Para as pessoas foi espetacular, a Manela curtiu, mas para nós foi um desespero do princípio ao fim. Foi muito difícil porque tínhamos tudo a desligar, coisas a dar choque. Foi uma luta tremenda. Foi tipo Portugal-França do princípio ao fim. Nós sempre aflitos. Depois vemos as imagens deste concerto e é uma coisa forte. Há várias músicas que ganharam muita motivação.
M.F. - É o nosso singing in the rain.
P.R. - Outro memorável é o Gordo Segredo.
M.A. - Foi o concerto de apresentação do Rosa Carne no Olga Cadaval, feito com uma cenografia especial. Foi a primeira vez que o Vítor Hugo Pontes fez a cenografia para um espetáculo nosso. Também tínhamos o Arnaldo Antunes.
P.R. - O que tem de especial é que foi um concerto que preparámos porque sabíamos que ia ser único. Filmámos. Isto é um grande risco. Tínhamos toda a equipa de filmagem, tinha de correr tudo bem, porque senão o trabalho ia por água abaixo. Correu muito bem. Praticamente aproveitámos todas as canções que tocámos.
H.G. - Às vezes são concertos nos quais estamos meses a trabalhar para uma apresentação com 400 pessoas. São apostas que nos interessam muito. Sabemos que vamos aprender com aquilo. Vamos fazer algo que nunca fizemos e é uma maneira de nos estimularmos.
M.A. – É a possibilidade de experimentar algo diferente. É outra lógica. São outros os prazeres que são convocados. É a possibilidade de fazer algo fora do saco, como com fazer o acompanhamento musical ao vivo da exibição de Nosferatu. É mudar completamente o foco da tua atenção e do teu instrumento para outro sítio, para servir uma tela, uma história que está a ser projetada. No caso do Rosa Carne, ou nos Vampiros, é experimentar e fazer, não uma peça de teatro, mas olhar para as canções de uma forma diferente. Ver como se ligam com uma ideia, com uma narrativa do princípio ao fim. O Disco Voador teve muita graça por isso. Por termos pegado nas canções e apanhado esse fio narrativo que as ligava. A dimensão cenográfica e até de performance da banda poder ser explorada de outra maneira. É o poderes esticar a corda.
Clã - "Problema de Expressão" (videoclipe ao VIVO) https://t.co/X61Eh3Hxmh via @YouTube
— Brown PIRES TEIXEIRA (@PauloPIRESTEIX1) 30 de junho de 2015
Há em vocês a procura consistente de uma determinada estética?
H.G. - Sim, quando pensamos num disco, e especialmente nas canções, há muitas imagens na cabeça. Pensa-se sempre que se pode fazer um vídeo. Quando vais para o palco, cada vez sentimos mais a necessidade de tentar prolongar o máximo possível isso, nunca perdendo o que para nós é muito importante: interpretar as músicas. Sabemos que é isso que fazemos bem e que no fundo as pessoas vão sentir-se tocadas por isso. Tudo o que aconteça no palco tem de ser feito com consistência e tem de ser um prolongamento do que está acontecer. O que mais odeio é ver bandas que tocam e têm um vídeo atrás com imagens a passar. Faz-me muita confusão. Nunca percebo. A não ser quando é bem feito. Ou ver luzes que nada têm que ver com a música que estão a tocar. Quando a música sai de um disco para o palco tem de levar algo atrás e a equipa que trabalha connosco tem de perceber isso. Tentamos envolver a equipa desde muito cedo. Senão, corremos o risco de ser algo que fica muito pobre. Esses são os condicionamentos de hoje com a crise.
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Sabemos que o próximo disco pode ser o último. Ninguém pode afirmar que ainda vamos fazer mais três ou quatro discos. Podemos fazer um disco e chegar à conclusão que não faz sentido fazermos mais
Há vinte anos, quando lançaram o primeiro disco, alguma vez pensaram que, passado todo este tempo, ainda andariam por aqui e com grande sucesso?
H.G. – Eu pensava isso. Achávamos que queríamos ser um grupo como os Xutos, que na altura já teriam uns 10 ou 15 anos. Tínhamos a sensação de que iria resultar, se calhar porque andávamos a ensaiar desde 1992 para lançar o primeiro disco em 1996. Não queríamos ter todo aquele trabalho para durar um disco ou dois. Nem demos pelo tempo passar. Quando agora se fala de um ‘best of’, vemos sempre como uma coisa estranha para nós, que nunca quisemos fazer isso. Estamos sempre a olhar para a frente. Mas quando nos pomos a ouvir as músicas, ou a ver fotografias, vemos que já andamos cá há muito tempo. Como sempre que começamos um trabalho queremos fazer uma coisa nova, a sensação que temos é que não percebemos nada disto, que estamos sempre a aprender. É o que acontece quando vamos para estúdio.
M.F. - A música que fazemos permite-nos reinventar. Refrescamo-nos muito de disco para disco.
P.R. - Sabemos que o próximo disco pode ser o último. Ninguém pode afirmar que ainda vamos fazer mais três ou quatro discos. Podemos fazer um disco e chegar à conclusão que não faz sentido fazermos mais. Sinto isso. Acho que o grupo está bem, vive bem, mas tem idade.
H.G. – Na verdade, podemos achar que já não temos nada para dizer. Não temos nenhum compromisso.
Clã - "Tira a Teima" (ao Vivo 2008) https://t.co/JMwUq2chzu
— jifreclest (@jifreclest5) 25 de julho de 2016
E ainda têm alguma coisa para dizer. Pensam num novo disco?
H.G. - Normalmente, temos uma fase em que começo a trabalhar nas músicas. Quando já tenho uma meia dúzia, juntamo-nos e começamos a escolher e a ensaiar. Estamos no início desse processo. De qualquer forma, isso está mais atrasado porque tivemos uma encomenda para estrear um musical a estrear em janeiro. Em setembro ou outubro já temos de começar a ensaiar. Será apresentado no Teatro Carlos Alberto, no Porto. A encomenda é do Teatro Nacional São João, resulta de um convite do Nuno Carinhas, e é um musical para a infância. Está um pouco relacionado com o facto de terem visto o nosso espetáculo “Disco Voador”. O próprio Nuno queria muito encenar um espetáculo para a infância e queria um musical. Já tenho as canções todas. Estou a compor as músicas do musical e a avançar isso o mais rápido possível. Temos de começar a trabalhar com os autores. Só depois voltarei a pegar nas coisas dos Clã.
Os Clã são um grupo democrático?
(GARGALHADA GERAL)
P.R. - Todos opinam, mas quem manda é o Hélder.
M.A. - Digamos que o Hélder tem voto de qualidade.
M.F. - Votamos e ele veta. Pensa mais profundamente sobre os assuntos e depois expõe.
CLÃ - POIS É https://t.co/ygLn92Pb9D
— jifreclest (@jifreclest5) 25 de julho de 2016
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