Entrevista

Nuno Júdice: Herberto Helder, “um fôlego poético inesgotável”

Nuno Júdice “Herberto era muito frontal, tinha grande admiração por escritores muito na área do surrealismo” FOTO EXPRESSO

Nuno Júdice “Herberto era muito frontal, tinha grande admiração por escritores muito na área do surrealismo” FOTO EXPRESSO

Nuno Júdice conheceu Herberto Helder antes do 25 de Abril. Manuel de Freitas nunca o conheceu pessoalmente, mas com ele trocou cartas e livros. Os dois falam ao Expresso do poeta que perdemos

TEXTO RAQUEL MARINHO

Conheceu o Herberto Helder. Chegaram a dar-se?

Demo-nos naqueles grupos de poetas escritores que se juntavam nos cafés do Saldanha, antes do 25 de Abril, e depois ainda uns três ou quatro anos depois do 25 de Abril.

Pude conviver bastante com ele junto com o Carlos de Oliveira, o José Gomes Ferreira, o Augusto Abelaira.

Raquel Marinho lê “Queria fechar-se inteiro num poema”, de Herberto Helder

Que cafés eram esses?

Era o Monte Carlo, e depois um outro restaurante chamado Toni dos Bifes, que era perto da casa do Carlos de Oliveira.

E como é que ele era?

Era uma pessoa muito frontal que evidentemente tinha grande admiração por escritores muito na área do surrealismo, sobretudo o Michaux. E depois em relação à literatura portuguesa era também muito crítico, tinha uma selecção bastante estreita dos poetas que lhe interessavam.

Mas juntavam-se e falavam só de literatura?

Não, muito de política também. Ele era muito ligado ao Partido Comunista e o José Gomes Ferreira, que era muito irónico, dizia-lhe: 'bem, você agora já pode ir à União Soviética.' E ele dizia: 'nem pensar, mandam-me para a Sibéria.'

Ele sabia que aquilo que escrevia era subversivo.

Do que se recorda, era uma pessoa acessível?

Era acessível para o pequeno grupo que ele aceitava. Havia pessoas muito variadas, porque ele tinha aquele grupo de escritores mais ou menos mais reconhecidos, mas depois dava-se também com outros grupos mais marginais, dessa área do surrealismo, e ele ia ter com eles a outros sítios, julgo que ao chiado. Era alguém que, no fundo, tinha uma vida muito literária neste sentido, tinha grupos que alimentavam a sua vida social.

Sabe algum verso dele de cor?

Não sei de cor versos nenhuns mas digamos que tenho no fundo da memória coisas d'Os Passos em Volta, aquele livro de contos que foi muito importante para mim.

Foi muito importante para si, porquê?

Porque na altura, quando eu o li, ainda estava, julgo, no fim do liceu, e nessa altura a literatura era muito minada pela literatura de intervenção, mais política, e ler um livro que saía desse universo, que tinha um imaginário delirante, que falava da Europa de espaços que não nos eram acessíveis nessa altura, foi delirante.

O que é que o Herberto Helder nos deixa?

Deixa-nos primeiro uma poesia que vem na linha do Álvaro de Campos e do Ruy Belo, do poema longo e de um fôlego poético inesgotável, e que está também muito ligado a uma busca desse mundo mais interior, mais denso, da consciência, onde depois surge toda uma série de imagens que são sempre muito criativas e que ao mesmo tempo dão um lado físico a esse inconsciente.

O que é que ele significa para si?

Era uma grande referência que continuo a ler e, enfim, tenho sempre descobertas novas quando o leio. Era, sem dúvida, um dos maiores poetas vivos, não só português, numa Europa que está muito em crise. Ele era um sobrevivente.

Manuel de Freitas: “É um honra ter alguém com aquele nível na nossa literatura”

Manuel de Freitas: “É um honra ter alguém com aquele nível na nossa literatura”

Conheceste o Herberto Helder?

Não. Troquei algumas cartas com ele, até porque ele colaborou na Telhados de Vidro, trocámos alguns livros, algumas cartas, mas pessoalmente não.

Nicolau Santos lê “Aos Amigos”, de Herberto Helder

Gostavas de ter conhecido?

Quer dizer, eu acho que essas coisas acontecem ou não acontecem. Acho que era relativamente fácil naquela altura em que ele ia aos cafés aqui de Lisboa. Ele ia sempre ao mesmo sítio, e várias pessoas me disseram: 'não queres vir conhecer o Herberto?' Tive sempre algum pudor. Chegámos a falar um dia ir tomar um café a Cascais, o desafio veio dele, mas nunca calhou.

E dessa troca de emails e telefonemas, com que imagem é que ficaste dele?

Fiquei com a imagem de uma pessoa divertida, com muito humor, muito atenta, estava sempre atento aos novos poetas, e de uma pessoa também muito lúcida. E também de uma pessoa muito generosa, porque ele, não me conhecendo de lado nenhum, enviou-me inéditos para a Telhados de Vidro, e também me ofereceu livros que tinham sempre dedicatórias muito tocantes.

Ele ofereceu-te livros dele?

Sim, trocámos livros, eu também lhe oferecia os meus. Ele enviava-me coisas raras até, coisas que ele supunha que eu não tinha.

O que é que ele dizia da tua poesia?

Nunca dizia diretamente. Nunca comentou detalhadamente a minha poesia, mas pela relação que se foi estabelecendo através dessas cartas, tudo indica que ele teria algum apreço.

Era parco em elogios?

Sim, sim. Pelo menos no meu caso, sim.

Hoje tem-se dito aqui e ali que morreu o maior poeta português vivo. Concordas?

Acho que essas hipérboles são sempre perigosas. É evidente que o Herberto Helder era um dos maiores poetas não só em Portugal mas a nível mundial, era um dos maiores poetas vivos, ponto, em todo o mundo. Agora, isso não impede que haja poetas em língua portuguesa com uma grandeza comparável à do Herberto.

O que é que ele nos deixa?

Bom, deixa-nos uma obra polifacetada, porque não é apenas o poeta, convém lembrar, é também o autor de um livro ‘Photomaton & Vox’, que é um livro fundamental, dificilmente classificável, em que há textos mais críticos, mais poéticos, mas que faz uma avaliação crítica da cultura ocidental e do surrealismo. É um livro em que fica bastante clara a distância dele para com o surrealismo. E há 'Os Passos em Volta' que quanto a mim está entre o melhor que se escreveu na segunda metade do século XX português.

Não sendo poesia..

Pois, formalmente não é. Mas eu penso que o poeta está sempre presente, no caso do Herberto o poeta acaba por estar sempre presente, mesmo quando o registo aparentemente é outro.

Sabes algum verso dele de cor?

Não sou muito bom a decorar versos... lembro-me de um que para mim é bastante significativo quando ele diz: 'tudo significa morte'

Como é que vês este recolhimento que ele escolheu ter nos últimos anos?

Penso que foi um acto defensivo porque, às tantas, as pessoas iam ao café para ver o Herberto, conhecer o Herberto, ter a opinião do Herberto, e isso pode tornar-se extremamente cansativo. E, se calhar, foi um pouco para fugir a essa exposição. Involuntária, claro.

Involuntária, claro?

Sim, porque ele não ia lá para se expor. Acabava por haver isso, mas não era ele que queria atrair as pessoas, foi uma coisa que foi acontecendo.

Mas era mesmo assim? As pessoas iam assim procurá-lo?

O que me contavam era isso. Muitos jovens autores iam lá naquela ânsia de conhecer o grande poeta, saber a opinão dele. Pode ser cansativo a pessoa estar sempre a ser solicitada, quando ele no fundo queria era estar ali com os amigos.

Ele é provavelmente um dos poetas mais vendidos. Achas que é lido também?

Um dos poetas mais vendidos é com certeza. Não sei é se o número de vendas corresponde ao número de leitores, porque a poesia do Herberto Helder não é fácil. Creio que há pessoas que compram porque sabem que, além de ser um grande poeta, os livros podem adquirir valor, até valor monetário. Creio que não corresponde ao número de leitores mas isso é igualmente válido para o Saramago e para o Lobo Antunes. Há pessoas que os compram para ter na estante, não para ler.

Achas que vai ser mais lido agora?

Talvez. Pelo menos vai ser mais comprado, depois se as pessoas entram na obra e aderem àquela poesia, é outra questão.

O Herberto tem um poema em que fala do facto de os gregos não escreverem necrológios porque quando alguém morria, perguntavam apenas se tinha paixão. Tu achas que o Herberto tinha paixão?

Sim, sim. Não se podia escrever daquela maneira sem paixão

Já o voltaste a ler hoje?

Não.

Vais fazê-lo?

Não. Tenho-o bastante presente, li várias vezes a obra completa do Herberto.

Então a morte dele não muda nada?

Não muda porque o Herberto é daquelas pessoas que soube sempre que ia morrer e isso está muito presente na poesia dele. Os últimos dois livros são livros de quem sabe que vai morrer, de quem olha fixamente a morte. Evidentemente lamento a perda do cidadão, do homem, mas a minha relação com o poeta não vai mudar.

Gostarias de ter podido despedir-te dele?

Não tínhamos relação que o justificasse. Foi uma relação de alguma proximidade e respeito mutuo.

Achas que há alguém que possa continuar a voz dele na poesia?

Não. Aquela voz era tão própria que não tem sucessores. Houve muitos que tentaram mas o Herberto Helder é inimitável. Por muito que tentem seguir aquela via, ela era só dele. Não pode ter continuidade de modo nenhum.

No entanto, quem quiser escrever deve lê-lo.

Sim, é fundamental. É um honra ter alguém com aquele nível na nossa literatura.