Antes pelo contrário
José Gomes Ferreira
Mentiras, meias-verdades e dúvidas
São tantas, tantas, que provocam desconfiança, receio, alergia à política e o aumento da abstenção. Algumas têm resposta simples e direta. Outras nem tanto.
1 – A Troika empobreceu o país?
Quem empobreceu o país não foi a Troika, fomos nós quando decidimos viver a descoberto até chegar a 10 por cento de tudo o que produzimos ano, 17 mil milhões de euros financiados a crédito externo. Foram os sucessivos governantes portugueses que, sem olharem a meios para serem eleitos se conluiaram com banqueiros ávidos de lucros, gestores sem visão apenas preocupados com os resultados trimestrais (e os seus próprios prémios), decisores fracos perante as exigências sindicais de aumentos e benefícios de toda a ordem, que criaram a ilusão de que o país era rico e podia aguentar um elevado nível de gastos públicos e privados. Foram estes agentes políticos, económicos, financeiros, sindicais, que escolheram deliberadamente um modelo de crescimento económico baseado em crédito e sustentado em procura interna artificial. Fatalmente, este modelo teria de levar o país a uma situação de pré-falência. A correção ou empobrecimento não foi mais do que a clarificação de um erro económico gigantesco. Não foi a Troika que construiu esse erro, fomos todos nós. Uns mais culpados que outros, mas fomos nós. (É tão cómodo atribuir a terceiros a culpa e as consequências dos nossos próprios erros…)
Os responsáveis por essa ficção foram os governos anteriores, que gastaram o dinheiro que não tinham – que pediram lá fora - para satisfazer promessas eleitorais e ceder aos lobbies dos partidos, dos negócios, da finança, da especulação e do sindicalismo; foram os sucessivos presidentes da República, que autorizaram esses gastos sem levantar a sua voz alto e bom som, dizendo claramente que se estava a comprometer o futuro do país.
Os responsáveis foram Cavaco Silva (primeiro ministro), António Guterres, Durão Barroso, Pedro Santana Lopes e José Sócrates – este último, em muito maior grau que os anteriores, porque carregou ainda mais no acelerador do endividamento; foram os presidentes Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva, que deixaram passar as políticas da facilidade à custa de crédito externo; os negócios milionários de privados com custos escondidos para o contribuinte; os banqueiros, que intoxicaram o Estado, as empresas e as famílias com crédito excessivo; que forçaram os negócios de parcerias, a desorçamentação, as PPP, os Swaps, os produtos estruturados;
Os responsáveis pelo aumento das falências e do desemprego durante a aplicação do programa de assistência financeira foram também, em processo diferido no tempo, os presidentes dos maiores bancos incluindo o anterior governador do Banco de Portugal, ao deixarem correr o crédito para atividades especulativas e insustentáveis em vez de ser para a economia de bens transacionáveis; foram boa parte dos super - gestores do PSI 20 e alguns dos maiores escritórios de advogados do país, a que estão ligados muitos políticos, deputados e dirigentes partidários. Foram todos culpados pela má aplicação de recursos gigantescos na nossa economia, ao apostar num modelo errado. Foram mais culpados do aumento do desemprego e das falências do que a Troika e do que qualquer um dos cidadãos que agora têm de pagar a crise.
A Troika é uma parceria entre três clubes, aos quais Portugal aderiu de livre vontade e paga quotas regularmente - FMI, União Europeia (representada pela Comissão) e Banco central Europeu - que se substituíram aos credores privados nos mercados financeiros internacionais, quando Portugal deixou de ter acesso a mais empréstimos para cobrir amortizações de dívida e novas necessidades de financiamento decorrentes de défices galopantes. Três novos credores oficiais que, à última hora, emprestaram 78 mil milhões de euros para salvar o Estado português e, em consequência, os bancos nacionais da falência iminente. A aversão à Troika está de tal forma enraizada que até os jornais de referência publicam cartas de crianças a chamar nomes feios aos representantes dos credores internacionais. Mas em bom rigor, os culpados foram outros.
2 – A Troika e o Governo são responsáveis pelo aumento do desemprego, das falências e da queda do PIB?
Claro que a aplicação do programa de assistência financeira da Troika teve esse efeito imediato. Manter o mesmo tipo de economia, o mesmo nível de emprego que havia antes, significaria continuar a aumentar indefinidamente a já gigantesca pilha de dívida pública e externa. Teria sido possível continuar na mesma vida se os investidores quisessem, mas deixaram de querer ao aumentar os juros exigidos ao país, tornando-os impossíveis de suportar.
Ao cortar o nível de gastos do Estado em salários, pensões e subsídios, bem como outras compras de bens e serviços nos mercados interno e externo, o Governo levou a generalidade dos agentes económicos a corrigir em baixa o nível de salários e o número de empregos que mantinham. Sim, foi diretamente responsável pela perda de centenas de milhar de empregos. Setores como por exemplo o da construção e do imobiliário, da restauração, do comércio automóvel, não podiam simplesmente continuar a ter a dimensão que tinham. Não havia mais crédito externo canalizado pelos bancos, nem mercado interno suficiente para sustentar este modelo.
Ao aceitarem emprestar o dinheiro suficiente para evitarmos a bancarrota, os credores internacionais exigiram condições duras. Exigiram que este tipo de economia fosse alterado rapidamente e que se passasse a apostar em bens transacionáveis, sujeitos à concorrência interna e externa, e no aumento das exportações de bens e serviços.
A transição entre um e outro modelo de economia teria inevitavelmente de gerar desemprego, falências e redução de atividade económica em geral. O PIB caiu 5,5 por cento em termos acumulados em três anos. E podia ter sido pior. Ao decidirem fazer esta transição num período limitado de tempo, a Troika e o Governo são diretamente responsáveis pelo resultado. As razões para a necessidade dessa transição são bem mais profundas e envolvem outros agentes políticos e económicos. Mas seja um Governo PSD-CDS ou tivesse sido um Governo PS, PS-CDS, PS-PSD, todos seriam forçados a fazer o mesmo, senão as sucessivas tranches da Troika não seriam libertadas.
A não ser que tivéssemos declarado o incumprimento e tivéssemos saído do Euro, como propõe alguma esquerda. Com todas as consequências que se podem adivinhar facilmente.
3 – O cumprimento do programa de assistência financeira foi uma aposta errada?
Esta pergunta, em jeito de afirmação, pressupõe que havia alternativa. Não havia. O Governo aplicou o programa sem ter outra opção. Deixou de haver alternativa em 2011. Na verdade, parte da economia que existia até aquela altura era de ficção, parte dos empregos não eram sustentáveis, parte da nossa riqueza era uma mentira coletiva, já não muito antes não era sustentável. Qualquer Governo que tivesse assumido o poder em Portugal em Junho de 2011 teria sempre de fazer o papel de administrador judicial: teria sempre de convencer todos a receber relativamente menos, para evitar o colapso.
4 – A austeridade falhou em toda a linha, o que é preciso é estimular a economia e apostar no crescimento?
A questão é apresentada com se se tratasse de duas políticas completamente antagónicas, incompatíveis, uma exclui forçosamente a outra.
A política de austeridade, aplicada às contas do Estado, significa cortar despesas, aumentar impostos ou combinar ambas com o objetivo único de reduzir o défice. Pode e deve ser feita austeridade ao mesmo tempo que se estimula o crescimento económico.
O problema é que, quem diz que as políticas de austeridade e crescimento são antagónicas, entende que estimular a economia é gastar mais dinheiros públicos em grandes projetos de investimento (mais plataformas logísticas, na conceção de Carlos Zorrinho), em subsídios do Estado a atividades económicas, sem cuidar de perceber se são auto-sustentáveis.
Se se entender a política de crescimento económico como a libertação de burocracias para que os empresários invistam livremente; a eliminação de estruturas do Estado central, regional e local, que se atropelam no processo de licenciamento emperrando os projetos; a simplificação de leis e planos de ordenamento e ambiente; a promoção de crédito mais barato, fazendo concorrência aos bancos instalados com um novo banco de fomento que já devia estar a funcionar há muito; a pressão para que se baixem os custos de eletricidade, gás combustíveis líquidos, telecomunicações; uma reforma a sério da Justiça; Se se entender assim a política de crescimento económico, esta não é incompatível com a austeridade. Pelo contrário, complementam-se, são indissociáveis. O problema é que, tendo cortado o investimento público porque já não tinha dinheiro, o Governo se esqueceu de aplicar esta parte importantíssima da política de crescimento, falha que foi um dos maiores erros dos últimos três anos em Portugal.
Mas apesar de ter provocado um imediato e brutal aumento do desemprego e das falências, a austeridade não falhou em toda a linha. A economia voltou a crescer, o desemprego estabilizou e as exportações aumentaram muito nestes três últimos anos e as contas externas medidas pelas balanças corrente e de capital voltaram a estar equilibradas ao fim de muitas décadas. É para este reequilíbrio externo, mais que para o saldo das contas do Estado (que apesar de ter baixado muito ainda é negativo) que os investidores dos mercados olham em primeiro lugar.
Ponto muito importante: parte substancial do crescimento das exportações nos últimos três anos e da reanimação de alguns setores sustentáveis e altamente concorrenciais (por exemplo o turismo) é o resultado de investimentos, formação, desburocratização e inovação lançados no Governo de José Sócrates.
5 – É possível continuar a reduzir o défice do Estado e baixar o endividamento, devolvendo ao mesmo tempo salários, pensões e subsídios e repondo as taxas dos impostos ao nível anterior à aplicação do programa?
Não é. É uma falsa promessa. Quer queiramos quer não, todos nós temos de contribuir para resolver os desequilíbrios das contas do Estado. A despesa com as rubricas de salários, pensões e subsídios, significa 72 por cento da despesa pública total. É possível cortar mais nas outras rubricas da despesa, reformar o Estado, reduzir os pagamentos imorais às PPP, os juros dos Swaps, mas a poupança gerada por esses cortes nunca seria suficiente para se eliminar o défice sem tocar no primeiro tipo de despesas. Quem diz que é possível, engana-nos a todos e a si próprio. E quanto aos impostos, se se baixasse de novo o nível de tributação para o momento antes da intervenção da Troika, nesse caso teria de se cortar ainda muito mais na despesa pública para se chegar ao mesmo resultado em défice público. Mas em bom rigor, o Governo atual também não fez o que poderia ter feito para evitar cortes socialmente penosos: por exemplo, a reforma do Estado, a reestruturação das empresas públicas e os cortes de subvenções e benefícios fiscais que já devia ter feito a quem não merece recebê-los, como muitas fundações e entidades privadas. Medidas que teriam evitado grande parte dos sacrifícios de funcionários públicos, pensionistas e contribuintes em geral.
6 – O défice não foi reduzido, as contas do Estado estão fora de controlo e a dívida aumentou ainda mais?
O défice do Estado em 2010 ultrapassava os dez por cento do PIB, mais de 16 mil milhões de euros de buraco num só ano, a somar ao stock de dívida que já era muito elevado. Em 2013 fechou abaixo dos 5 por cento do PIB, cerca de 8 mil milhões de euros, e no final deste ano não deverá ultrapassar os 4 por cento, menos de 7 mil milhões. Claro que o ritmo de redução do défice foi bem mais lento do que estava previsto no memorando de entendimento, por causa do falhanço das previsões e dos vários erros de política económica, financeira e fiscal feitos pelo Governo (dos quais a TSU é outro exemplo flagrante). Mas esse abrandamento do ritmo de descida do défice correspondeu aos próprios pedidos da oposição no sentido de Portugal ter mais tempo para fazer as correções exigidas.
7 - Este Governo aumentou mais a dívida pública mais do que o Governo anterior?
O Governo anterior foi o responsável pelo maior volume e ritmo de aumento da dívida pública em Portugal desde 1870: uma duplicação do valor da dívida em apenas cinco anos. Sim, nos três últimos anos, o Governo atual aumentou ainda mais o volume da dívida pública, mas a um ritmo menor. Foi o resultado da identificação de mais dívida direta do Estado que estava escondida e do reconhecimento e assunção de dívida indireta que estava nas empresas públicas e em outros organismos autónomos e institutos públicos. É impossível parar um transatlântico em velocidade de cruzeiro no espaço de poucos metros.
8 - José Sócrates foi o único culpado pelo disparar da dívida, pelo descontrolo do défice e pela situação de pré-falência do país em 2011?
Não há nunca um único culpado das tragédias económicas e financeiras. Nunca. Há um conjunto de circunstâncias, atores, responsabilidades, um somatório de erros individuais e coletivos. José Sócrates foi o culpado das decisões que levaram ao maior aumento de dívida pública em menos tempo, mas o Governo anterior não iniciou, apenas acelerou uma tendência que já tinha décadas e ficou a dever-se a muitos outros responsáveis já identificados nas respostas anteriores.
9- Se o PEC IV tivesse sido aprovado, o país não teria precisado de um segundo resgate?
Mas ainda estamos nessa discussão porquê? Apesar de, na altura, ter havido calculismo político da oposição, nomeadamente do PSD, bem poderíamos andar entretidos de PEC em PEC, até ao PEC XX, que acabaríamos por ser resgatados na mesma. A questão já não era só portuguesa era também de perceção internacional sobre a periferia da Europa (caso da Irlanda) e a própria continuidade do Euro. Quem ainda não percebeu isto, não percebeu nada do que aconteceu a Portugal e ao Mundo desde 2007.
10 – Se o PS ganhar as eleições vai acabar com a austeridade, baixar de novo os impostos e devolver salários, pensões e subsídios para o nível em que estavam em 2011?
Não vai. Vai dizer que encontrou o país em pior situação do que pensava estar e que, por isso, terá de manter os sacrifícios por mais algum tempo. A não ser que o crescimento económico entretanto acelere e seja possível fazer essa devolução mais rapidamente. Mas nesse caso o mérito terá de ser pelo menos partilhado com o Governo antecedente (o atual), porque o crescimento económico não se consegue por decreto de um dia para o outro, resulta de decisões que só produzem efeitos a médio e longo prazo. Óscar Gaspar, assessor económico de António José Seguro, já disse publicamente que um Governo PS não poderá devolver imediatamente todos os rendimentos cortados, como pensões e salários dos funcionários públicos, assim que tomar posse.
11 - Se o PS ganhar as eleições em 2015 ou em votação antecipada, os mercados vão penalizar o país, e tudo o que foi conseguido até agora vai perder-se?
Um dos bancos mais influentes do mundo, a Goldman Sachs, já disse claramente que se houver eleições e o PS ganhar, vai continuar o mesmo tipo de política que tem sido seguida até agora em Portugal. Se houver mudança de Governo, os juros não vão subir só por causa disso. Poderão subir, sim, se houver demora exagerada na formação de um novo governo por causa das regras e formalismos constitucionais, ou um impasse nas negociações com um eventual parceiro de coligação necessárias para garantir uma maioria estável.
Também a chanceler Ângela Merkel já disse que tem a certeza de que, se António José Seguro for nomeado chefe do Governo, vai cumprir o tratado orçamental assinado pelo PS. Onde está escrito que até 2017 o défice estrutural (o saldo medido como se não houvesse crise económica) terá de ser de apenas 0,5 por cento do PIB – apenas 850 milhões de euros.
O Partido Socialista tem certamente bons economistas, técnicos, especialistas, políticos com sentido de Estado para Governar o país. Assim o líder saiba afastar os que, dentro de portas, têm agenda própria e continuam agarrados ao passado que nos conduziu à pré-falência.
12 - As privatizações trazem mais concorrência e eficiência à economia?
Não, é uma mentira. É um dos maiores logros vendidos aos portugueses por esta maioria PSD CDS-PP. As privatizações que se fizeram nos últimos três anos foram uma mera alienação de direitos de cobrança de rendas excessivas por oligopólios que funcionam em conluio com legisladores (deputados), banqueiros, advogados influentes e uma certa casta de gestores que tem dominado a nossa economia. É preciso exemplos dessas rendas?
13 - O Governo cortou efetivamente nas rendas da energia?
Não o suficiente, ao contrário do que tem dito. A promessa é que, em 2020, o famoso défice tarifário da eletricidade, que já ultrapassa os 5 mil milhões de euros esteja praticamente reduzido a zeros. Mas se não forem mudadas as leis aprovadas no Parlamento, que permitem lucros excessivos neste setor, está dívida aumentará em vez de diminuir.
Já no gás natural, no gás de botija e nos combustíveis líquidos, as promessas do Governo de obrigar a redistribuir lucros, cortar preços e vender em regime low cost, não passam disso mesmo, promessas, ameaças feitas em voz grossa.
14 - O Governo cortou efetivamente nas PPP?
Errado. Finge que cortou. As negociações estão todas suspensas da aprovação dos bancos. Os mesmos que são os primeiros e últimos beneficiários destes esquemas, por dupla via: como financiadores e como acionistas dos consórcios. Alguns pagamentos foram entretanto suspensos mas o desfecho deste dossier ainda pode trazer muitas surpresas.
15 - Se o Governo cortar boa parte das subvenções e os benefícios fiscais atribuídos aos grandes grupos económicos, o investimento foge todo?
Não foge todo. Algum fugirá sim, mas a base de atuação, a maior parte do mercado destes grupos é em Portugal. A esquerda, nomeadamente o PCP e o Bloco de Esquerda, têm razão neste ponto e na necessidade de se combater mais eficazmente a fuga de capitais através de zonas de tributação reduzida ou off-shore.
E tem razão a Esquerda na discussão sobre o plafonamento da Segurança Social, que os portugueses nunca devem deixar que aconteça, sob pena de se agravar ainda mais a distância entre ricos e pobres e de se entregar uma boa parte das nossas reformas ao setor financeiro que cobra comissões exageradas e devolve retornos bem mais magros do que promete. Mas estes temas têm de ficar para uma próxima crónica. Esta, mais uma vez, já vai demasiado longa.
P.s.:
Este artigo foi escrito na sequência de uma mensagem eletrónica chegada ao atendimento da SIC, com o seguinte teor:
“Boa tarde. Existe alguma reportagem publicada sobre de quem foi a culpa da crise económica em Portugal? Eu gostaria de obter esclarecimentos, mas com uma linguagem simples sobre o que causou a crise, melhor dizendo, quem são os culpados, com nomes e apelidos como se diz na gíria! (A culpa) Foi dos bancos, dos contribuintes, dos políticos...? Em que medida é que cada um de nós é culpado? E porque é o contribuinte, na sua grande maioria, a pagar esta fatura?”