Henrique Raposo

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

Os intelectuais à volta da fogueira

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Uma das grandes radiografias do mal

Uma das grandes radiografias do mal

“A Mente Aprisionada”, de Czeslaw Milocz, é um estudo da mente comunista durante o auge do totalitarismo (anos 40 e 50). Julgo porém que as suas conclusões são universais e intemporais. A mente fascista dos anos 40 e 50 seguiu os mesmos mecanismos e, hoje em dia, os profetas do pensamento único andam perto destas coordenadas mentais. A pergunta que Milocz fez nos anos 50 é a pergunta que nós em 2018 também devemos fazer: o que leva um escritor a renunciar à sua visão pessoal para passar a ser uma voz telecomandada da verdade vigente? Porque é que um escritor ou intelectual abdica do seu direito e dever (ver o mundo através do seu ponto de vista único e intransmissível) para passar a ser um escrivão de uma verdade oficial que não admite contraditório?

A pergunta que Milocz fez nos anos 50 é a pergunta que nós em 2018 também devemos fazer: o que leva um escritor a renunciar à sua visão pessoal para passar a ser uma voz telecomandada da verdade vigente?

Milocz contestava uma tese em vigor no ocidente: a adesão ao comunismo fora feita através da coerção; as pessoas, a começar nos intelectuais, aderiram ao comunismo ou “nova fé” só porque haviam sido obrigados. Contra esta tese, Milocz retratou a adesão voluntária dos intelectuais: foi uma sedução, não uma imposição. Como dizia Milocz, “estamos aqui a lidar com matérias mais significativas do que a mera força”. E então porque é que os intelectuais e escritores se auto-mutilaram na fogueira do comunismo? Porque é que os intelectuais andaram à volta desta fogueira como meninos? A resposta tem vários pontos, sendo que o primeiro é este: a tirania comunista deu ao intelectual um lugar de poder e de pertença; dentro da estrutura comunista, o intelectual era “útil” para uma visão coletiva e total da sociedade e do próprio homem. Ser intelectual era um emprego com saída, dava estabilidade, conforto, pertença.

Convencido da sua utilidade no sistema coletivo que lhe dava pão e pertença, o intelectual começou a odiar todos os indivíduos que recusavam a (alegada) verdade, todos os indivíduos que continuavam a ter uma visão espiritual e individual da humanidade; começou a ver todos os adversários como homens que mereciam punição e purga. Aliás, o Homem (com maiúscula) devia sofrer para renascer na glória da verdade. “Se permanece mau e estúpido, porque é que ele não pode ser usado como estrume?”. Os homens em concreto podiam ser desumanizados e destruídos, pois o seu sangue seria o estrume da nova humanidade. Não a humanidade tal como ela existia, mas a humanidade tal como era idealizada pelo intelectual.