LÍNGUA PORTUGUESA
“Os autores do Acordo Ortográfico nunca foram capazes de explicar a sua bondade”
CAOS Para Carlos Fiolhais, tal como para os outros subscritores do documento, o AO criou “um monstro”. FOTO GONÇALO ROSA DA SILVA
São mais de 170 personalidades da cultura, da ciência, da política e da academia as que assinaram o manifesto, divulgado esta segunda-feira, que clama pela revogação do Acordo Ortográfico de 1990. Carlos Fiolhais, físico e professor, é um deles. E explica porquê
TEXTO LUCIANA LEIDERFARB
“Cidadãos contra o Acordo Ortográfico de 1990” é um manifesto subscrito por cerca de 170 personalidades, dirigido em primeiro lugar ao Chefe de Estado, ao Parlamento e ao Governo, com o objetivo de exigir a “desvinculação das República Portuguesa” do AO e a “revogação imediata” da Resolução do Conselho de Ministros nº 8/2011, que instituía a aplicação do Acordo em Portugal e que os assinantes consideram inconstitucional.
Não é essa, porém, a maior das críticas que nomes como António Barreto, Carlos Fiolhais, Maria Filomena Molder, António-Pedro Vasconcelos, Eduardo Lourenço, Maria Alzira Seixo ou João Barrento fizeram questão de fixar por escrito no documento. Para todos eles, o AO90 “nasceu de uma ideia imprevidente do então Primeiro-Ministro Cavaco Silva” e resultou um “fiasco político, linguístico, social, cultural, jurídico e económico”, que mais não fez do que “abrir uma caixa de Pandora e criar um monstro” de consequências ainda imprevisíveis.
Para agravar o estado de coisas, a sua aplicação não passou de um “golpe político” e jurídico, uma vez que entrou em vigor sem a ratificação unânime de todos os Estados envolvidos — sem a adesão de Angola e Moçambique, os dois maiores países de língua oficial portuguesa a seguir ao Brasil.
O que mais choca os assinantes é o facto de o AO, que pretende unificar as duas ortografias oficiais do português e assim simplificar a escrita, produziu efeitos que resultaram no contrário. E o culpado desta situação é o critério que o rege: o da pronúncia, gerador de um “caos ortográfico” e de “aberrações da maior gravidade”, como as confusões semânticas; as incoerências pela eliminação das consoantes ditas mudas 'c' e 'p'; a bizarria da supressão do acento agudo em certas palavras; e sobretudo os erros decorrentes da própria aplicação do AO, que levou a população a “cortar 'cês' e 'pês' a eito”, sem qualquer lógica ou verificação.
Perguntamos a Carlos Fiolhais, catedrático de Física na Universidade de Coimbra e um dos mais respeitados cientistas portugueses, a razão por que subscreveu o manifesto. A resposta foi: “A língua é de todos, não tem de andar mandada pela política.”
ACORDO Já uma geração de portugueses que só aprendeu a ler e escreber pelas novas regras
O Manifesto hoje divulgado começa por falar em “golpe político”, na medida em que o AO está a ser aplicado sem que todos os Estados o tenham ratificado. Que opinião lhe merece esta situação?
O AO é uma boa confusão e nunca me convenceu. A ideia, diziam os seus autores, era unificar a ortografia do portuguesa e contribuir para a afirmação no mundo da comunidade dos países de língua portuguesa. Ora, o AO ficou muito longe da unificação ortográfica — aliás impossível e de resto nem sei se desejável — e quanto à afirmação da lusofonia é claro que o projeto não ficou fortalecido. A falta de harmonia quanto ao AO pelos diversos países salta à vista. Há uns à frente e outros atrás, quando a ideia era um avanço conjunto. Na minha opinião, a língua não tem de andar mandada pela política. A língua é de todos, é um património comum, no qual tanto a unidade como a diversidade são valores. A língua demorou muito tempo a formar e não pode ser formada (para muitos deformada) de repente na secretaria. Lembro que a língua portuguesa é uma das grandes línguas de cultura no Ocidente, o que inclui não só a literatura como a ciência.
Os subscritores erguem-se contra o principal critério do AO — o da pronúncia — e elenca as 'aberrações' que tal critério produziu. Pessoalmente, em que medida isso o incomoda ou alterou a sua relação com a língua?
O AO não me incomoda nada, pois não o sigo. Escrevo como aprendi e sei. Não cortei consoantes nulas, não mudei as maiúsculas nem os hífenes. Felizmente que os polícias da língua ainda não me prenderam. No manifesto estão elencadas apenas algumas das aberrações. Os autores do AO nunca foram capazes de explicar a sua bondade. Criaram mais problemas do que resolveram, ao pretenderem relacionar mais a escrita com a fonética. Eu sei que a ortografia não é eternamente fixa e admito que, tal como no passado, possa haver mudanças consensualizadas. Mas neste caso não houve consenso nenhum. Foi à trouxe-mouxe (nem sei se lhe tiraram o tracinho)!
Fala-se também de um abuso de poder relativamente ao AO90, aplicado sem discussão pública e escondendo 25 pareceres negativos de especialistas. Por que acha que isto aconteceu? Ainda vamos a tempo de o discutir e reverter o processo?
Não sei por que aconteceu. Talvez pela procura de protagonismo de alguns atores. Estamos sempre a tempo de emendar o que está mal. Aliás já ouço falar em revisão do acordo...Mas a melhor revisão seria provavelmente anulá-lo.
Com o AO, tentou-se unificar as ortografias oficiais e anular as diferenças entre o diferentes usos do Português. O que é que isso revela sobre os portugueses?
Eu não penso que seja possível anular as diferenças. Nem sei para que isso possa servir. Como se diz no texto, nenhuma outra língua com variantes, como o inglês, o castelhano ou o francês, se preocupou com tal coisa. Até agora o AO não trouxe qualquer benefício prático. Só um aumento de entropia.
Uma revisão do AO não criaria confusão a quem hoje aprende a escrever segundo as suas regras?
Se se rever o AO, incluindo uma revisão total que seria a sua anulação, não penso que houvesse grande incómodo. Uma coorte de crianças e jovens, que aprenderam segundo o AO, continuariam sem dificuldade a perceber tudo e reaprenderiam facilmente a escrever segundo outra norma.