
DESCOBERTA Neurocientistas de nove hospitais e universidades norte-americanas estudaram mil crianças e conseguiram provar a ligação entre o tamanho da superfície cerebral e o contexto socioeconómico FOTO D.R.
CIÊNCIA
Como a pobreza afeta o crescimento do cérebro
Se havia indícios nesse sentido, agora sabe-se com certeza científica: as crianças em condição de pobreza têm o cérebro 6% mais pequeno do que as restantes. Agora é preciso apurar as causas
TEXTO LUCIANA LEIDERFARB
Era conhecido que as crianças sujeitas ao chamado 'risco ambiental' — lares desestruturados, contexto socioeconómico desfavorável, fraca intervenção do adulto — podiam apresentar sinais de atraso cognitivo. Sabia-se também que as deficiências nutricionais se faziam sentir nos resultados escolares e nos comportamentos. O que não se sabia era que a pobreza tem efeitos diretos no cérebro desde a primeira infância, senão desde o útero materno.
Em março, um estudo publicado pela revista “Nature Neuroscience” veio demonstrar, sem margem para dúvidas, que as crianças nascidas em famílias com rendimentos muito baixos possuem uma superfície cerebral 6% mais pequena do que as vindas de meios economicamente mais favorecidos.
A descoberta é arrepiante e deve fazer-nos tremer: não abrange apenas o lado do mundo ao qual se costuma colar a etiqueta de 'miséria' — África, Ásia ou América do Sul. Abrange também Portugal, onde a pobreza atinge uma em cada cinco pessoas, ou seja, dois milhões de seres humanos.
O estudo, o maior alguma vez realizado neste campo, juntou durante três anos investigadores de nove hospitais e universidades americanas e incidiu sobre um grupo de 1.100 crianças e adolescentes dos 3 aos 20 anos. Estes foram submetidos a testes de ADN e a ressonâncias magnéticas, além de serem considerados os rendimentos das famílias e o seu nível de educação.
Analisado o córtex — a camada exterior do cérebro que controla as funções cognitivas mais sofisticadas, como a linguagem, a leitura ou a capacidade de decisão — e o tamanho do hipocampo — a 'casa' das memórias de curto prazo —, concluiu-se que o cérebro das crianças cujas famílias auferiam menos de 25 mil dólares anuais (22 mil euros) era não só mais pequeno, como o seu hipocampo também se afigurava menor.
O contexto molda-nos
“O cérebro é o produto da genética e da experiência, e a experiência é particularmente poderosa para moldar o seu desenvolvimento durante a infância”, disse Kimberly Noble, da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e autora principal do estudo, ao “The Guardian”, continuando: “Intervenções para melhorar as condições socioeconómicas, a vida em família e as oportunidades em termos de educação podem fazer uma enorme diferença.”
Outra das autoras, Elizabeth Sowell, que dirige o laboratório de imagiologia neurológica e desenvolvimento cognitivo do Children's Hospital de Los Angeles, comentou no mesmo sentido: “A mensagem não é: 'se és pobre, o teu cérebro será menor e não há nada a fazer sobre isso'. Melhorar o acesso a recursos que enriqueçam o contexto de desenvolvimento pode mudar as trajetórias do desenvolvimento cerebral, mesmo em crianças e adolescentes da faixa etária que estivemos a estudar.”
A toxicidade da pobreza
Mas como é que a pobreza altera o cérebro? Quais as verdadeiras causas para que tal aconteça? O estudo não fornece uma resposta cabal, mas há anos que é procurada por diversos investigadores, apontando-se a nutrição deficiente ou os altos índices de stress como fatores capazes de deixar marcas severas mesmo antes do nascimento. Patt Levitt, neurocientista que no passado estudou as sequelas da exposição à cocaína em fetos e recém-nascidos, hoje debruça-se sobre os efeitos biológicos da pobreza. E descobriu que situações como “sobrelotação, barulho, más condições de alojamento, violência ou tumulto familiar”, enquanto formas extremas de stress, podem ser tóxicas para o cérebro em fase de crescimento, tal como o são as drogas ou o álcool.
Hoje diretor do National Scientific Council of the Developing Child, Levitt constatou que essas circunstâncias fazem disparar o cortisol, hormona benéfica quando presente em pequenas quantidades, mas cujo descontrolo pode ser desastroso. Na mulher grávida, por exemplo, esta hormona “entra na placenta, influenciando o cérebro do bebé e adulterando os seus circuitos”, disse este mês à revista “The New Yorker”. Mais tarde, esse mesmo bebé continua a ser afetado pelo cortisol produzido pelo seu próprio corpo.
Inverter a marcha
A descoberta de que as condições económicas incidem sobre o tamanho do cérebro é um primeiro passo num caminho de correlações que necessitam de uma causa para se poder agir. Kimberly Noble assim o reconhece: “Correlação não é causa. Podemos falar de elos entre a educação dos pais, o rendimento familiar e a estrutura do cérebro das crianças, mas não podemos dizer com certeza que essas diferenças são a causa das modificações na estrutura cerebral.”
Por esta razão, a cientista vai agora dar início a uma nova investigação que visa afinar os resultados da anterior. Recrutando 1.000 mães americanas com rendimentos baixos, a ideia é dar a metade uma soma de 333 dólares mensais (293 euros), enquanto as restantes recebem apenas 20 dólares (17 euros), durante três anos. No fim, procurar-se-á aferir em que medida essa mudança influencia o desenvolvimento dos seus filhos nos primeiros três anos de vida. Aquilo que norteia este projeto é a certeza de “nada é imutável” e que “o cérebro é incrivelmente plástico e capaz de ser moldado pela experiência”. E os seus resultados “podem informar diretamente a política pública sobre as vantagens de beneficiar famílias de baixos rendimentos com filhos pequenos”.