LITERATURA
“Vai e Põe uma Sentinela”. Eis o primeiro capítulo
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Romance de Harper Lee chega a Portugal em outubro. Leia aqui o primeiro capítulo, em primeira mão
TEXTO NUNO GALOPIM
Um dos maiores êxitos literários do ano, o livro “Vai e Põe uma Sentinela” (no original “Go Set a Watchman”), de Harper Lee, vai ser publicado entre nós pela Presença a 21 de outubro, numa tradução de Isabel Nunes e Helena Sobral. Este representa o segundo romance na obra da escritora norte-americana que, até aqui, se limitava, além de artigos em revistas, ao romance “To Kill a Mockingbird”, originalmente lançado em 1960 e logo transformado num best-seller. Esse clássico da literatura do século XX, que entre nós conheceu várias traduções, com títulos diferentes, surgirá também agora, mas apenas em formato e-book, como “Matar a Cotovia”, numa nova versão pelas mesmas duas tradutoras.
“Vai e Põe uma Sentinela” corresponde ao texto que a jovem Harper Lee originalmente apresentara a um editor. E foi por sugestão dele que a escritora aceitou o desafio de trabalhar alguns flashbacks, focando então a história uns 20 anos antes, daí nascendo o texto alternativo que publicou como a sua estreia literária em 1960 e que Robert Mulligan levou ao cinema dois anos depois, com Gregory Peck à frente do elenco, num filme que teve estreia entre nós como “Na Sombra e No Silêncio”.
Há muito dado como perdido, o manuscrito dactilografado de “Go Set a Watchmen”, foi encontrado fechado num cofre na casa da escritora na sua cidade natal de Monroeville. O romance finalmente revelado este ano devolve-nos ao Alabama e a ambientes de segregação e discriminação que a escritora presenciou na sua infância e nos quais decorria a narrativa de “Matar a Cotovia”, de quem são igualmente recuperadas algumas personagens.
O Expresso Diário apresenta hoje, em primeira mão, o primeiro capítulo da tradução portuguesa de “Vai e Põe uma Sentinela”.
1
Desde a partida de Atlanta que olhava pela janela da carruagem-restaurante com um deleite quase físico. Sentada à mesa do pequeno-almoço, bebia o café enquanto observava as últimas elevações da Geórgia a ficarem para trás e a darem lugar à terra vermelha e, com ela, às casas de telhado de zinco plantadas nos pátios de terra varrida e nos quintais, onde crescia a inevitável verbena dentro dos pneus pintados de branco. Esboçou um sorriso largo quando avistou a primeira antena de televisão erguida no topo de uma casa de negros, sem pintura, e a sua alegria aumentou ao verificar que se multiplicavam.
Jean Louise Finch costumava fazer aquela viagem de avião, mas na quinta deslocação anual para casa decidiu ir de comboio de Nova Iorque até ao ramal de May-comb. Por um lado, apanhara um susto de morte da última vez que andara de avião, pois o piloto decidira voar pelo meio de um tornado. Por outro lado, ir de avião significava que o pai tinha de se levantar às três da manhã e conduzir cento e cinquenta quilómetros para a ir buscar a Mobile, ao que se seguia um dia normal de trabalho. Ele tinha setenta e dois anos e já não era justo obrigá-lo a tal.
Estava satisfeita por ter decidido ir de comboio. Os comboios haviam mudado desde a sua infância, e a novidade da experiência divertia-a: qual génio anafado, um bagageiro materializou-se quando ela carregou num botão da parede; com uma ordem sua, uma bacia de aço inoxidável destacou-se de outra parede, e havia uma sanita onde se podia apoiar os pés. Decidiu não se deixar intimidar pelos vários avisos impressos em redor do compartimento — designado por couchette —, mas, quando se fora deitar na noite anterior, conseguira ficar entalada contra a parede porque ignorara a indicação de PUXAR ESTA ALAVANCA SOBRE OS SUPORTES, situação remediada pelo funcionário para seu embaraço, pois tinha o hábito de dormir apenas com a parte de cima do pijama.
Felizmente, o homem patrulhava o corredor quando aquela armadilha se fechara com ela lá dentro. «Eu tiro-a daí, miss», disse em resposta às pancadas que se ouviam lá de dentro. «Não, por favor», respondera ela. «Diga-me só como faço para sair.» «Consigo fazê-lo de costas voltadas», afiançara o homem e assim fora.
Quando acordou na manhã seguinte, o comboio serpenteava, ruidoso, pelos ramais de Atlanta, mas, obedecendo a um outro aviso na carruagem, deixou-se ficar na cama até ver passar o sinal de College Park. Vestiu-se, envergando as roupas de Maycomb: calças cinzentas, uma blusa preta sem mangas, meias brancas e mocassins. Embora ainda faltassem quatro horas para chegar, conseguia ouvir a fungadela desagradada da tia.
Bebia a sua quarta chávena de café quando o Crescent Limited grasnou, qual ganso gigante, ao seu homólogo, que corria para norte, e ribombou através do Chattahoochee à entrada do Alabama.
O Chattahoochee é um rio largo, raso e lamacento, naquele dia com pouca água. Um banco de areia amarelado reduzira-lhe a corrente a um fio de água. Talvez cante no inverno, pensou. Não me lembro de um único verso desse poema. Tocando flauta pelos vales, bra-vio? Não. Foi escrito para uma ave aquática ou para uma queda-d’água?
Reprimiu firmemente a sua tendência para uma certa turbulência ao refletir que o poeta Sidney Lanier devia ter sido um tanto parecido com o seu primo Joshua Singleton St. Clair, há muito desaparecido, e cujos temas literários se estendiam do Black Belt até Bayou La Batre . A tia de Jean Louise costumava lembrar-lhe que o primo Joshua era um exemplo familiar que não se devia desaprovar com ligeireza: fora um homem com uma figura esplêndida, um poeta, desaparecido no auge da vida, e era bom que Jean Louise se recordasse de que era um crédito para a família. As suas fotografias não envergonhavam os seus: fazia lembrar o descabelado poeta e dramaturgo inglês Algernon Swinburne.
Jean Louise sorriu para si própria ao lembrar-se do pai a contar-lhe o resto da história. O primo Joshua desaparecera certamente, não pela mão de Deus mas pelas hostes de César.
Ao frequentar a universidade, o primo Joshua estudava demasiado e pensava demais; na verdade, imaginava-se como uma personagem literária saída direta-mente do século XIX. Envergava uma capa escocesa e usava botas militares que mandara fazer a um ferreiro segundo um desenho seu. Sentiu-se frustrado com as autoridades ao disparar sobre o presidente da universidade, o qual, na sua opinião, não passava de um especialista de limpeza de esgotos. Isso era certamente verdade, mas tratava-se apenas de uma desculpa frívola para atacar alguém com uma arma mortal. Depois de uma quantia considerável ter mudado várias vezes de mão, o primo Joshua foi levado e internado numa instituição estatal para os inimputáveis, onde permaneceu pelo resto dos seus dias. Constou que se mostrava razoável em todas as questões até alguém mencionar o nome do presidente, momento em que o seu rosto se contorcia e ele assumia a posição de um grou-branco, a qual mantinha por oito ou mais horas. Nada nem ninguém conseguia levá-lo a baixar a perna até ele se ter esquecido do homem. Nos dias límpidos, lia em grego e deixou um fino volume de versos, impressos em privado por uma firma de Tuscaloosa. A poesia era tão avançada em relação ao seu tempo que ainda ninguém a entendera, mas a tia de Jean Louise exibia-a casualmente em grande destaque numa mesa da sala.
Riu-se em voz alta e depois olhou em volta a ver se alguém a ouvira. O pai tinha uma forma especial de minar os sermões da irmã sobre a superioridade inata de qualquer Finch. Contava sempre à filha o resto da história, calmamente e com toda a solenidade, mas ela pensava detetar por vezes um brilho claramente profano no olhar de Atticus Finch, ou seria apenas a luz a refletir-se nas suas lentes? Nunca teve a certeza.
Os campos e o comboio haviam abrandado para um rolar suave, e, da sua janela até ao horizonte, Jean Louise nada mais avistava para além de pastagens e vacas pretas. Interrogou-se por que motivo nunca considerara bonito o seu país.
Em Montgomery, a estação aninhava-se numa curva do rio Alabama, e, ao sair do comboio para esticar as pernas, o regresso do que lhe era familiar, com a sua monotonia, a luz e os odores curiosos, veio ao seu encontro. Falta alguma coisa, pensou. Os rolamentos aquecidos, é isso. Havia um homem que passava com uma alavanca e se enfiava debaixo do comboio. Ouvia-se um estrépito seguido de um silvo, e erguia-se um fumo branco que nos fazia pensar que nos encontrávamos no interior de um aquecedor de pratos. Agora estas coisas funcionam a óleo.
Sem razão aparente, invadiu-a um medo antigo. Havia vinte anos que não voltava àquela estação, mas quando era criança e fora à capital com Atticus, sentira-se aterrorizada, não fosse o comboio, que balançava, precipitar-se pela margem do rio e afogá-los a todos. Quando, porém, voltou a embarcar, rumo a casa, esqueceu-se disso.
O comboio sacolejava através de pinhais e apitou, zombeteiro, a uma peça de museu em forma de campânula, pintada de cores vivas estacionada numa clareira. Ostentava o letreiro de uma empresa madeireira, e o Crescent Limited podia tê-la engolido inteira e ainda lhe sobrava espaço. Greenville, Evergreen, ramal de May-comb.
Dissera ao revisor para não se esquecer de a deixar sair e, porque ele era já velhote, Jean Louise contava com uma brincadeira: iria entrar no ramal de Maycomb como se fosse perseguido por demónios e parava o comboio quatrocentos metros para lá da pequena esta-ção. Depois, quando se despedisse dela, iria dizer-lhe como lamentava, que quase se esquecera. Os comboi-os mudavam, os revisores não. Brincar com as jovens em paragens a pedido era uma marca da profissão, e Atticus, que conseguia prever as ações de todos os revisores de Nova Orleães até Cincinnati, esperá-la-ia, consequentemente, a menos de seis passos do local onde iria desembarcar.
O seu lar era o condado de Maycomb, uma divisão arbi-trária com cerca de cem quilómetros de compri-mento e menos de cinquenta no seu ponto mais largo, uma terra bravia semeada de lugarejos, sendo May-comb, a sede do condado, o maior. Em termos históricos, o condado de Maycomb mantivera-se, até uma altura comparativamente recente, tão isolado do resto da nação que alguns dos seus cidadãos, desconhecendo as predileções políticas do Sul nos últimos noventa anos, continuavam a votar nos republi-canos. Os com-boios não passavam por lá — o ramal de Maycomb, uma designação de cortesia, localizava-se no condado de Abbott, a uma distância de trinta quilómetros. O serviço de autocarros era inconstante e parecia não ter nenhum destino específico. Todavia, o governo federal impusera a construção de uma ou duas autoestradas pelo meio dos pântanos, dando assim aos cidadãos a oportunidade de partir de livre vontade. Pouca gente, porém, aproveitava essas estradas. Por que motivo o haveriam de fazer? Para quem não queria muito, o que existia era bastante.
O condado e a cidade haviam recebido o nome de um certo coronel Mason Maycomb, um homem cuja auto-confiança inapropriada e excessiva obstinação tinham dado origem à perplexidade e à consternação de todos os que com ele cavalgaram nas guerras contra os índios Creek. O território em que operava era vagamente montanhoso a norte e plano a sul, nos limites da planície costeira. O coronel Maycomb, certo de que os índios odiavam lutar em terras planas, esquadrinhou o terri-tório até ao seu limite norte em busca deles. Quando o seu general descobriu que Maycomb vagueava pelos montes enquanto os Creeks se escondiam nas matas de pinheiros do sul, enviou um batedor índio amigável ao coronel com a seguinte mensagem: «Avance para sul, c’os diabos.» Maycomb, convencido de que se tratava de um ardil dos Creeks para o apanhar (então não havia um demónio de olhos azuis e cabelos ruivos a comandá-los?), aprisionou o batedor índio e deslocou-se ainda mais para norte, até as suas forças se perderem sem remédio nas antigas florestas, onde permaneceram até ao fim das guerras, em total desnorte.
Depois de terem passado os anos suficientes para o convencer de que talvez a mensagem tivesse sido verdadeira, o coronel deu início a uma marcha resoluta para sul. Durante o trajeto, as suas tropas encontraram colonos que se deslocavam para o interior e que lhes disseram que as guerras contra os índios tinham terminado. As tropas e os colonos mostraram-se suficientemente amigáveis e transformaram-se nos antepassados de Jean Louise Finch. O coronel Maycomb continuou a avançar até ao que é presentemente Mobile, a fim de se certificar de que as suas façanhas recebiam o crédito que lhes era devido. A versão que ficou para a história não coincide com a verdade, mas são estes os factos, uma vez que foram passando de boca em boca ao longo dos anos, e todos os filhos de Maycomb os conhecem.
— ... vá buscar as suas malas, miss — disse o bagageiro. Jean Louise seguiu-o da carruagem-restaurante até ao seu compartimento, onde tirou dois dólares da carteira: um que já era habitual e outro por a ter libertado na noite anterior. Como era esperado, o comboio passou pela estação como se fosse perseguido por demónios e acabou por parar cerca de cento e oitenta metros mais à frente. O revisor apareceu a sorrir e disse que lamentava, que quase se esquecera. Jean Louise devolveu-lhe o sorriso e esperou, impaciente, que o bagageiro montasse o degrau amarelo. Ele ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as duas notas.
O pai não estava à sua espera.
Olhou ao longo da linha para a estação e viu um homem alto, de pé, na pequena plataforma, que saltou para baixo e correu ao seu encontro.
Ele deu-lhe um abraço apertado, afastou-a um pouco, beijou-a com força na boca e depois com mais ternura. — Aqui não, Hank — murmurou ela, muito agradada.
— Cala-te, menina — retorquiu ele, segurando-lhe o rosto. — Até te beijo nos degraus do tribunal se me apetecer.
O dono do direito a beijá-la nos degraus do tribunal chamava-se Henry Clinton, um amigo de longa data e companheiro do irmão, que, se continuasse a beijá-la assim, se transformaria em seu marido. Ama quem quiseres, mas casa-te com os teus era, para ela, uma máxima quase instintiva. Henry Clinton pertencia aos seus e, naquele momento, a máxima não lhe parecia particularmente dura.
Caminharam de braço dado pela linha para ir buscar a mala. — Como está o Atticus? — perguntou ela.
— Hoje as mãos e os ombros estão a fazê-lo passar um mau bocado.
— Não pode guiar quando está assim, pois não?
Henry dobrou os dedos da mão direita até meio e disse: — Não consegue fechá-los mais do que isto. Miss Alexandra tem de lhe apertar os sapatos e abotoar-lhe a camisa quando está assim. Nem sequer consegue segurar a lâmina de barbear.
Jean Louise abanou a cabeça. Era demasiado velha para se insurgir contra tal iniquidade, mas demasiado nova para aceitar a doença incapacitante do pai sem protesto. — Não há nada que eles possam fazer?
— Sabes bem que não — respondeu Henry. — Ele toma quatro mil e quinhentos miligramas de aspirina por dia e nada mais.
Henry pegou na mala pesada, e dirigiram-se ao car-ro. Jean Louise pensou como reagiria quando chegasse a sua vez de ter dores quase todos os dias. Certamente não seria como Atticus: se lhe perguntassem como estava, ele daria uma resposta, mas nunca se queixava. O seu temperamento não mudara e, assim, para saber como se sentia, era necessário perguntar-lhe.
Henry só o descobriu por acaso. Um dia, estavam eles no cofre dos registos do tribunal, em busca de uma certidão predial, quando Atticus puxou de um pesado livro de hipotecas, ficou branco como a cal e o deixou cair. «Que se passa?», perguntara Henry. «Artrite reumatoide. Podes pegar-lhe tu?», esclareceu Atticus. Henry perguntou-lhe havia quanto tempo sofria da doença, e Atticus respondeu seis meses. Jean Louise sabia? Não. Então, era melhor contar-lhe. «Se o fizeres, ela vem para cá tentar cuidar de mim. O único remédio é não nos deixarmos vencer.» E o assunto ficou encerrado.
— Queres guiar? — perguntou Henry.
— Não sejas tolo — retorquiu ela. Embora fosse uma condutora razoável, odiava manipular objetos mecânicos mais complicados que um alfinete de segurança: dobrar cadeiras de jardim era uma fonte de profunda irri-tação; nunca aprendera a andar de bicicleta nem a escrever à máquina e pescava com uma vara. O seu desporto favorito era o golfe porque o princípio essencial se limitava a um pau, uma bola pequena e um estado de espírito.
Verde de inveja, observou a facilidade com que ele dominava o automóvel. Os carros são escravos dele, pensou. — Direção assistida? Transmissão automática? — quis saber.
— Podes crer — disse ele.
— Bem, e se tudo isso se avariar e não tiveres mudanças para meter? Seria um sarilho, não é?
— Mas nada se vai avariar.
— Como é que sabes?
— Chama-se fé. Anda cá.
Fé na General Motors. Pousou a cabeça no ombro dele.
— Hank — acabou por dizer —, o que é que aconteceu na verdade?
Tratava-se de uma velha piada entre ambos. Uma cicatriz rosada começava por baixo do olho direito, passava pelo canto do nariz e atravessava-lhe o lábio superior em diagonal. Por baixo do lábio, havia seis dentes da frente falsos que nem a própria Jean Louise conseguia convencê-lo a tirar para lhe mostrar. Voltara com eles da guerra. Um alemão, mais para exprimir o seu desagrado com o fim do conflito do que por qualquer outra razão, golpeara-lhe o rosto com a coronha de uma espingarda. Ela decidira fingir que acreditava na história: com armas que disparavam a longa distância, «fortalezas voadoras» B-17, bombas V e coisas semelhantes, era provável que Henry nunca tivesse estado nem sequer perto dos alemães.
— Está bem, querida — disse ele. — Estávamos numa cave em Berlim. Toda a gente bebera demais, e começou uma luta. Gostas de ouvir coisas verosímeis, não é? E agora, casas comigo?
— Ainda não.
— Porquê?
— Quero ser como o doutor Schweitzer e divertir-me até chegar aos trinta.
— E olha que ele bem se divertiu — comentou Henry, sombrio.
Jean Louise aninhou-se debaixo do seu braço. — Sabes bem o que quero dizer — declarou ela.
— Pois sei.
Não havia jovem melhor que Henry Clinton, segundo as pessoas de Maycomb, e Jean Louise concordava. Nascera na ponta sul do condado. O pai abandonara a mãe pouco depois de Henry nascer, e ela trabalhara dia e noite na sua pequena loja numa encruzilhada para que Henry pudesse frequentar as escolas públicas de May-comb. Desde os seus doze anos que vivia como hóspede do outro lado da rua, em frente da casa dos Finches, e só este facto colocava-o num plano mais elevado: era dono de si próprio, livre da autoridade de cozinheiras, capatazes e pais. Também era quatro anos mais velho que ela, o que, naquele tempo, fazia diferença. Ele gozava com ela, ela adorava-o. Quando tinha catorze anos, a mãe morrera, deixando-lhe praticamente nada. Atticus Finch cuidou do pouco dinheiro que resultara da venda da loja — as despesas do funeral levaram grande parte —, acrescentou algum seu em segredo, e arranjou trabalho a Henry como marçano no Jitney Jungle depois da escola. O rapaz terminou o liceu e foi para a tropa; depois da guerra, frequentou a universidade, onde cursou Direito.
Por volta dessa altura, o irmão de Jean Louise morreu subitamente, e, passado esse pesadelo, Atticus, que sempre pensara deixar o seu escritório ao filho, começou à procura de outro rapaz. Empregar Henry foi uma coisa natural e, a seu tempo, o jovem transformou-se numa espécie de assistente, nos seus olhos e nas suas mãos. Sempre respeitara Atticus Finch, e, em breve, o respeito deu lugar à afeição. Henry considerava-o um pai.
Jean Louise, porém, não era considerada uma irmã. Nos anos em que esteve ausente, na guerra e na universidade, ela passara de uma rapariga agressiva e irritante que vestia jardineiras a uma reprodução razoável de um ser humano. Começou a sair com ela durante a visita anual de duas semanas a casa e, embora ela ainda se movesse como um rapaz de treze anos e repudiasse a maior parte dos ornamentos usados pelas mulheres, ele encontrava-lhe algo tão intensamente feminino que se apaixonou. Na maior parte do tempo, era agradável olhar para ela, e a sua companhia era cativante, mas não era certamente uma pessoa fácil. Atormentava-a uma certa inquietude espiritual que ele não entendia, mas sabia que, para si, era ela a tal. Protegê-la-ia. Casaria com ela.
— Farta de Nova Iorque? — perguntou.
— Não.
— Dá-me rédea solta estas duas semanas que eu faço-te ficar farta dela.
— Isso é uma sugestão imprópria?
— Sim.
— Então, vai prò inferno.
Henry parou o carro. Desligou o botão da ignição, virou-se e olhou para ela. Jean Louise sabia quando ele ficava sério em relação a alguma coisa: o cabelo muito curto eriçava-se qual escova irritada, corava e a cicatriz avermelhava-se.
— Querida, queres que fale como um cavalheiro? Miss Jean Louise, alcancei já um estatuto económico que me permite sustentar duas pessoas. Tal como no Israel do Antigo Testamento, laborei sete anos nas vinhas da universidade e nas pastagens do escritório do teu pai por ti...
— Vou dizer ao Atticus que te peça mais sete anos.
— Que horror.
— Além disso — prosseguiu ela —, tratava-se de Jacob. Não, eles eram o mesmo. Mudavam sempre de nome de três em três versos. Como está a tia?
— Sabes muitíssimo bem que ela está bem há trinta anos. Não mudes de assunto.
As sobrancelhas dela vibraram. — Henry — disse afetadamente —, posso ter um caso contigo, mas não me caso.
Era isso mesmo.
— Não sejas criança, Jean Louise! — balbuciou e, esquecendo-se da última inovação da General Motors, fez menção de agarrar a alavanca das mudanças e carregou com o pé, em busca da embraiagem. Como isso não resultasse, torceu violentamente a chave da ignição, premiu alguns botões, e o grande carro deslizou lenta e suavemente pela autoestrada.
— É lento a arrancar, não é? — comentou ela. — Não presta para conduzir na cidade.
Henry mirou-a, furioso. — Que queres dizer com isso?
Daí a pouco aquilo estaria transformado numa verdadeira discussão. Ele falara a sério. O melhor seria deixá-lo furioso para que ficasse em silêncio, de forma a ela poder pensar no assunto.
— Onde é que arranjaste essa gravata horrível? — perguntou.
Agora.
Estava quase apaixonada por ele. Não, isso é impossível, pensou. Ou se está ou não se está. O amor é a única coisa inequívoca do mundo. Há certamente diver-sas formas de amor, mas com todas elas é uma premissa de sim ou sopas.
Jean Louise era o tipo de pessoa que, quando confrontada com uma saída fácil, escolhia sempre a mais difícil. A saída fácil naquele caso seria casar com Hank e deixá-lo trabalhar para ela. Passados uns anos, quan-do as crianças lhe chegassem à cin-tura, apareceria o homem com quem devia ter casado. Haveria corações em dúvida, febres e ansiedade, longos olhares trocados nos degraus dos correios e infelicidade para todos. Terminados os gritos e as moralidades, restaria apenas mais um caso amoroso indigno, à moda dos mem-bros do country club de Birmingham, e um inferno privado, criado por eles com os últimos eletrodomésticos Westinghouse.
Não. De momento, iria prosseguir o caminho pedregoso das solteiras. Dedicou-se à tarefa de restaurar a paz com honra.
— Querido, lamento, lamento a sério — disse, o que era -verdade.
— Não faz mal — respondeu Henry, dando-lhe uma palmada no joelho. — É só que às vezes fico com vontade de te matar.
— Sei bem que sou odiosa.
Henry mirou-a. — És esquisita, querida. Não consegues fingir.
Ela olhou para ele. — De que é que estás a falar?
— Bom, como regra geral, a maior parte das mulheres, antes de os apanharem, mostra aos seus homens um rosto sorridente e agradável. Escondem os pensamentos. Mas tu, querida, quando te sentes odiosa, és mesmo odiosa.
— Não é mais justo para um homem poder perceber em que é que se está a meter?
— Sim, mas não vês que assim nunca apanhas homem nenhum?
Ela mordeu a língua perante aquela evidência e disse: — E como é que eu faço para ser uma feiticeira?
Henry começou a falar, entusiasmado. Aos trinta anos, gostava de dar conselhos, talvez por ser advogado. — Primeiro — afirmou com toda a calma —, cala-te. Não discutas com um homem, em especial se souberes que lhe podes ganhar. Sorri muito. Fá-lo sentir-se grande. Diz-lhe como é maravilhoso e serve-o.
Ela lançou-lhe um sorriso vivo e disse: — Hank, concordo com tudo o que disseste. És o indivíduo mais perspicaz que conheço, tens um metro e noventa e será que posso acender-te o cigarro? Que tal?
— Horrível.
E ficaram amigos de novo.