FASHION LEAKS
Como a Gucci e o grupo Kering evitaram pagar 2.500 milhões de euros em impostos
Um dos maiores impérios de marcas de luxo da Europa, controlado pela família Pinault, em França, tem usado ao longo dos anos um complexo esquema de evasão fiscal. Para reduzir ao mínimo o pagamento de impostos, o grupo Kering, detentor da Gucci e da Yves Saint Laurent, passou a enviar a roupa, os sapatos, as malas e todos os outros artigos que produz em fábricas instaladas em vários países para uns armazéns na Suíça, redistribuindo-os a partir daí para o mundo inteiro
Texto Yann Philippin (Mediapart) e Vittorio Malagutti (L’Espresso), EIC (European Investigative Collaborations)
A operação de buscas varreu os centros nevrálgicos da Gucci. A 29 novembro de 2017 inspetores da Guardia di Finanza, a congénere italiana da Autoridade Tributária, entraram de rompante nas sedes que aquela marca de luxo possui em Florença e Milão e durante três dias vasculharam os cantos à casa. Ao mesmo tempo, as residências dos principais gerentes de Gucci eram invadidas pelas autoridades, enquanto o seu CEO, Marco Bizzarri, foi detido pela polícia no Park Hyatt Hotel em Milão. Estas incursões foram feitas no âmbito de uma investigação liderada por um procurador de Milão em que a Gucci é suspeita de ter cometido crimes de fraude fiscal.
O Ministério Público italiano reuniu indícios de que esta marca com 97 anos de história — e atual subsidiária do grupo francês Kering — terá protagonizado uma fuga aos impostos no montante total de 1,3 mil milhões de euros, durante sete anos, ao transferir os seus lucros para a Suíça, através de um esquema que envolveu a criação de empresas no Luxemburgo e na Holanda que não passavam de meras caixas postais.
Documentos confidenciais obtidos pelo Mediapart e partilhados com o EIC (European Investigative Collaborations), um consórcio europeu de jornalismo de investigação de que o Expresso faz parte, mostram que este esquema de evasão fiscal não se limitou apenas à Gucci. Foi usado em grande escala por todo o grupo proprietário da marca, a casa-mãe Kering.
Um dos maiores casos na Europa
As revelações trazidas pelo Mediapart e partilhadas com o EIC levantam a questão sobre até onde vai a responsabilidade da família Pinault, que controla o grupo Kering e detém a quinta maior fortuna em toda a França, com ativos avaliados em 19 mil milhões de euros, num negócio de características familiares, já que o fundador do grupo, François Pinault, foi substituído pelo filho François-Henri como CEO do império de marcas de luxo em 2005.
De acordo com a informação do EIC, o grupo conseguiu evitar o pagamento de 2,5 mil milhões de euros em impostos desde 2002, sobretudo em prejuízo do fisco italiano, mas também dos cofres públicos de França e do Reino Unido. A ser confirmado pelos tribunais, este é um dos maiores casos de evasão fiscal de que há conhecimento na Europa.
Depois de comprar a Gucci, em 1999, a Kering exportou o esquema de evasão fiscal que já estava a ser usado pela marca italiana a outras marcas de luxo do grupo: Bottega Veneta, Alexander McQueen, Stella McCartney, Balenciaga e Yves Saint Laurent. Só por si, a casa Saint Laurent sozinha evitou o pagamento de cerca de 180 milhões de euros de impostos em França.
Como é que o esquema funciona?
O esquema assenta no uso de duas empresas quase sem atividade e que foram incorporadas em países com regimes fiscais mais atrativos do que aqueles que são oferecidos por França, Reino Unido e Itália, onde o grupo Kering tem os seus quartéis-generais. Essas empresas são a Kering Holland e a sua subsidiária Kering Luxembourg.
A subsidiária luxemburguesa controla, por sua vez, quatro empresas em Ticino, um cantão de língua italiana na Suíça. Essas quatro empresas, apesar de serem formalmente distintas umas das outras, na realidade parecem tratar-se de uma única entidade — uma espécie de mealheiro concebido para reduzir o nível de tributação das marcas e acumular milhares de milhões de euros.
O esquema foi revelado pela primeira vez em 2016 no decurso de uma investigação feita pela organização não-governamental suíça Public Eye. A operação de fuga aos impostos começou em 1997, quando a Gucci criou a Luxury Goods International (LGI), uma companhia detentora de um armazém em Cadempino, uma pequena cidade suíça de 1500 habitantes nos arredores de Lugano, junto à fronteira com Itália.
Depois de ter sido vendida à Kering em 1999, a Gucci fez da LGI o seu único centro de logística. Desde então que todos os produtos da marca, feitos na sua grande maioria em Itália, passaram pelo armazém de Cadempino antes de serem distribuídos pelo mundo inteiro.
O armazém tem uma ótima localização, à beira da autoestrada e apenas a 90 minutos de carro de Milão. Mas esse não foi o motivo para a Gucci ter optado por aquele sítio. De acordo com a investigação do EIC, o grupo negociou com o cantão de Ticino um acordo tributário que permite que a multinacional pague apenas cerca de 8% de IRC, quase quatro vezes menos do que a taxa praticada em Itália, que é de 31%.
A Gucci cedeu à LGI, através de um contrato, não só o monopólio da distribuição da marca mas também a venda dos seus produtos a todos os estabelecimentos de retalho. Portanto, a LGI recebe a esmagadora maioria das receitas conseguidas com a marca.
Marcas relançadas a partir da Suíça
Quando a Kering assumiu o controlo da Gucci, o grupo tirou partido da rentabilidade que o esquema usado pela marca italiana permitia. Todas as marcas de moda de Kering passaram também a usá-lo: a marca italiana de artigos de couro Bottega Venetta, as casas de moda britânicas Stella McCartney e Alexander McQueen e, em França, as marcas Yves Saint Laurent e Balenciaga.
O aumento dos lucros foi tão grande que a Kering abriu mais dois armazéns no cantão suíço de Ticino. O mais recente fica na localidade de Sant'Antonino e é um enorme edifício rosa e cinza do tamanho de três campos de futebol, que podem despachar 2.000 embalagens por hora. Na fachada não existe nada a indicar claramente a identidade do proprietário. No entanto, os armazéns recebem filas incessantes de camiões carregados de vestidos, sapatos e malas de senhora.
“É o efeito Kering em ação, de Sant'Antonino para o mundo inteiro”, disse Jean-François Palus, administrador executivo da Kering e presidente da LGI na cerimónia de inauguração do armazém em 2014, citado pelo jornal “Coriere di Ticino”. Este “efeito Kering” é espetacular: de acordo com a investigação do EIC, a LGI conseguiu um lucro líquido acumulado de sete mil milhões de euros entre 2009 e 2017, o que corresponde a quase 70 por cento de todo o lucro obtido pelo grupo Kering durante esses oito anos.
Mas o grupo emprega apenas 600 pessoas na Suíça, o que representa menos de 3% do total de funcionários que trabalham com as suas marcas de luxo. Mas como é que possível que 3% dos trabalhadores sejam responsáveis por 70% dos lucros?
Em consequência disso, o grupo poupou cerca de 2,5 mil milhões de euros em impostos desde 2002. E entretanto, essa estratégia enriqueceu o cantão de Ticino, que arrecadou mais de 600 milhões de euros em impostos — uma média de um milhão de euros por cada trabalhador dos armazéns da Kering.
Um modelo usado por outros grupos de moda
A Kering não é um caso isolado neste tipo de acordos estabelecidos com o cantão de Ticino. Outros gigantes da indústria de luxo, como a Armani, a Hugo Boss e a Versace, bem como a The North Face, montaram também centros de logística perto de Lugano exatamente pelas mesmas razões. O fenómeno tornou-se tão recorrente que aquela zona passou a ser chamada Fashion Valley, ainda que na realidade tudo se resuma a um aglomerado de armazéns e a paragens de camiões.
Embora os acordos fiscais estabelecidos com os grupos de moda sejam confidenciais, o cantão de Ticino admitiu num documento oficial que o Fashion Valley representa a sua maior fonte de receitas.
Para a ONG suíça Public Eye, trata-se de pura pirataria fiscal, feita à custa de outros países europeus. “É chocante que as multinacionais de moda acumulem milhões em lucros todos os anos por estarem a recorrer a esse tipo de regimes fiscais”, enquanto as pessoas “que fabricam os produtos de luxo nas fábricas fornecedoras dessas marcas recebem salários miseráveis”, escreve a Public Eye no relatório que produziu sobre o Fashion Valley.
E como é que a Gucci e a Kering reagem?
A Gucci e o seu CEO, Marco Bizzarri, não responderam às perguntas que lhes foram enviadas. Também contactada pela EIC, a casa-mãe Kering esclareceu num email que a empresa suíça LGI, responsável pelo esquema fiscal, “é uma importante plataforma de distribuição comercial e logística e um importante parque industrial”, que “possui uma atividade económica efetiva e diretamente relacionada com a atividade comercial das marcas do grupo”.
A Kering acrescenta que a situação da LGI “é bem conhecida pelas autoridades fiscais suíças, italianas e francesas”.
Mas o procurador de Milão responsável pelo inquérito-crime em curso sobre suspeitas de fraude fiscal argumenta que o esquema é demasiado artificial para cumprir com a convenção sobre impostos da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico). Oficialmente, a LGI vende todos os produtos das marcas, mas a maior parte do trabalho é realizada pelos funcionários da Kering em Londres, Paris ou Milão.
É difícil defender a tese de que a equipa que trabalha nos armazéns suíços, mesmo que fosse a mais eficiente do planeta, é responsável por 70% dos lucros de algumas das mais prestigiadas marcas globais. No mundo dos negócios, a logística é uma atividade de baixo valor e geradora de custos. Geralmente, é pago às estruturas logísticas apenas o suficiente para permitir que os armazéns cubram as suas despesas e tenham uma pequena margem de lucro.
No universo da Kering acontece o contrário. Os armazéns suíços surgem como a sua maior fonte de riqueza. São eles que pagam à Gucci ou à Yves Saint Laurent, dando a impressão que estas casas de luxo históricas não passam de empreiteiros.
O resultado está à vista: a Gucci pagou apenas 100 milhões de euros em Itália de 2013 a 2016 — em vez de pagar 650 milhões de euros, que seria o cenário se os lucros dos armazéns da LGI fossem tributados no lado sul da fronteira suíça.
A Gucci e a sua gestão suíça
Mas esta alegada fraude não se resume apenas aos produtos, também diz respeito à administração da Gucci.
Para justificar o pagamento de impostos na Suíça, a Kering transferiu de forma fictícia cerca de 20 gestores de topo da Gucci para empresas suíças e empregou-os com contratos de trabalho suíços, embora ainda estivessem a trabalhar em Milão. O exemplo veio de cima. Como o o EIC já revelou, o CEO, Marco Bizzarri, beneficiou durante sete anos do facto de ter declarado uma duvidosa residência fiscal suíça.
A maioria desses executivos tornaram-se funcionários da Luxury Goods Services (LGS), uma empresa suíça registrada no mesmo endereço que a LGI. A empresa não tem outra atividade a não ser hospedar os executivos “transferidos”. A LGS é presidida por Béatrice Lazat, diretora de recursos humanos da Kering — um sinal claro de que a operação foi supervisionada pela sede do grupo em Paris.
A Kering fez um grande esforço para dar credibilidade às transferências de pessoal. O grupo atribuiu endereços de e-mail suíços (@ch.gucci.com) a esses funcionários. De acordo com uma testemunha entrevistada pela polícia italiana, o grupo também lhes forneceu carros de empresa com placas de matrícula suíças e telemóveis suíços e incentivou-os a transferir as suas residências pessoais para a Suíça.
Como levar o dinheiro suíço para casa
A Kering configurou este circuito offshore com um sistema para repatriar os enormes lucros obtidos pela máquina de de fazer dinheiro suíça. As empresas suíças pertencem à Kering Luxembourg, que é uma subsidiária da Kering Holland, registrada nos Países Baixos. O CEO do grupo, François-Henri Pinault, é administrador da Kering Holland há quinze anos.
A Kering Luxembourg também possui várias empresas operacionais da divisão de luxo do grupo. Recupera os dividendos pagos pela LGI na Suíça e garante o financiamento interno que as subsidiárias necessitam ao abrigo do regime luxemburguês. Este é um esquema clássico de otimização fiscal. O excedente é então transferido para a Kering Holland, que pode redistribuir o dinheiro já líquido de impostos.
Estas duas empresas parecem ter como único objetivo beneficiar de vantagens fiscais nas operações financeiras internacionais oferecidas pelo Grão-Ducado e pelos Países Baixos. A Kering nega estas alegações e declara que essas estruturas “não oferecem benefícios fiscais” ao grupo, apesar de as estruturas holandesas e luxemburguesas parecerem ser apenas empresas de fachada.
A Kering Luxembourg, cuja administração é composta por uma mistura entre consultores fiscais locais e vários executivos do grupo, está registada num centro de escritórios compartilhado, onde aluga 22 metros quadrados com apenas três mesas. A maior parte da sua atividade e os seus 13 funcionários estão alojados em Cadempino, no mesmo edifício da LGI. A Kering discorda. “É incorreto dizer que a Kering Luxembourg SA não tem atividades ou funcionários no Luxemburgo”, diz a empresa.
Enquanto isso, nos Países Baixos a Kering Holland fica no 13º andar de um arranha-céus no sul de Amesterdão chamado Rembrandt Tower. Até 1999, a empresa chamava-se Gucci Group NV, tendo sido renomeada de Kering Holland depois de o grupo comprar a marca italiana.
De acordo com a investigação do EIC, a Kering Holland é gerida a partir de Cadempino e opera com contas suíças num banco em Lugano. Segundo um relatório e contas entregue em 2013, a empresa tem apenas um funcionário na Holanda — uma assistente administrativa holandesa chamada Nicole Plieger.
Durante a nossa visita ao local, a rececionista no lobby da Rembrandt Tower proibiu-nos de subir ao 13º andar e disse-nos que ainda não tinha visto a funcionária da Kering Holland chegar ao escritório naquele dia. Pouco depois, telefonámos a Nicole Plieger, que nos informou que ela era a “gerente” da empresa. E também era a única funcionária? “Isso não é verdade. Estamos três aqui.” E poderia ela dizer-nos por que é que a Kering Holland está sediada nos Países Baixos? “Nãoooo, não vou responder-lhe a isso”, disse ela, “porque estamos proibidos de fazer isso. Quer que eu perca o meu emprego?”
Os patrões fogem do esquema
Este caso é chocante porque a Yves Saint Laurent e a Gucci têm vindo a crescer exponencialmente. Com 15,5 mil milhões de euros de receitas e um lucro operacional de 2,9 mil milhões de euros só no ano passado, o grupo Kering poderia facilmente pagar os impostos nos países onde a maior parte do trabalho é executado.
O próprio grupo Kering parece ter sentido que esta situação se estava a tornar delicada para a Gucci. A 5 de outubro de 2016 o seu CEO, François-Henri Pinault, renunciou ao cargo de administrador da Kering Holland. Isso ocorreu seis meses após a abertura de um primeiro inquérito-crime em Itália sobre os negócios imobiliários da Kering, e que levou os investigadores a detetar o esquema tributário suíço.
Uma outra administradora demitiu-se da Kering Holland no mesmo dia que Pinault: a sua colaboradora próxima Patricia Barbizet, vice-presidente do conselho de administração do grupo em Paris.
Houve ainda mais um homem-chave que também fugiu: Jean-François Palus, o vice-administrador-executivo da Kering e braço direito de François-Henri. No final de 2016 Palos deixou de ser presidente da LGI, a máquina de fazer dinheiro suíça que está no cerne do esquema de evasão fiscal. E em julho de 2017 renunciou ao cargo de administrador da Kering Luxembourg.
E existem, depois, os indícios sobre o patrão da Gucci, Marco Bizzarri, e sobre a sua duvidosa residência fiscal suíça. ”Ele é um cidadão italiano e cumpre os regulamentos fiscais de seu país”, disse François-Henri Pinault ao Le Monde após as primeiras revelações trazidas pelo EIC. Pinault esqueceu-se de dizer que o CEO da Gucci regularizou a sua situação apenas no ano passado — e teve que pagar uma grande soma às autoridades fiscais italianas, segundo uma fonte que acompanhou o assunto de perto.
Até ao final de 2017 uma lei italiana concedeu uma amnistia que evitava a instauração de processos-crime e oferecia uma isenção de coimas aos contribuintes que voluntariamente decidissem redomiciliar os seus endereços fiscais. Será que CEO da Gucci voltou a ser residente em Itália porque temia ser alvo de uma investigação criminal?
Esther Rosenberg, do NRC, Handelsblad, na Holanda, contribuiu para esta investigação