O POEMA ENSINA A CAIR

“QUANDO EU MORRER,ENTERREM O CAIXÃO LONGE DO MEU CORPO”

Um dia Paulo Tavares leu o “Poema do Funcionário Cansado”, de António Ramos Rosa, e decidiu abandonar o emprego que tinha num escritório de contabilidade e administração. Inscreveu-se na faculdade e tirou o curso de Línguas e Literaturas. Hoje dá aulas de português, é membro da direção da Sociedade Guilherme Cossoul e um dos responsáveis pela Editora Artefacto, criada em 2010. Está também a terminar o doutoramento em Estudos Literários. “Vou atirar uma bomba ao destino”, de Álvaro de Campos, é um dos versos que sabe de cor.

TEXTO RAQUEL MARINHO VÍDEO EXPRESSO GRAFISMO VÍDEO JOÃO ROBERTO

[MERCÚRIO.VÉNUS.TERRA.MARTE.JUPÍTER.SATURNO.URANO.NEPTUNO]

Recolhi toda a radiação cósmica

de fundo, mas depois fui repetindo

«o universo é um eco de vozes gastas»,

como alguém que envelhece

sem sabedoria.

A morte é estranha

e existe.

Paulo Tavares (n.1977) tinha menos de 10 anos quando decidiu que queria ser cantautor por causa das canções que escutava na rádio, e esse desejo ditou-lhe o início dos primeiros escritos: “era muito novo e nem fazia ideia de que as pessoas cantavam letras de outras pessoas. Para mim, obviamente, só poderias cantar aquilo que escrevias. E então o que teria de fazer? Começar a escrever algumas coisas para serem cantadas.” Abandonou essa ideia já na adolescência e quando integrava uma banda de garagem porque percebeu “muito rapidamente” que a sua voz não lhe permitia ser cantor: “ao princípio ainda imputei aos gravadores a má qualidade do som, mas depois não.” Ainda na adolescência aprendeu a tocar guitarra, mas também esse projeto acabou por ser abandonado: “toco muito mal guitarra, portanto disto tudo, ficou-me a escrita, e ainda bem.

O salto das letras de canções para os poemas fez-se de forma natural, sem episódios específicos como pontos de viragem, “quando olhas retrospetivamente não vês grandes saltos”, mas ao mesmo tempo que escrevia canções e poemas ensaiava também os primeiros contos “num caderno que levava para a escola” e que ia mostrando aos colegas: “era uma espécie de work in progress, e os meus colegas liam e ficavam à espera do próximo capítulo.” Nesses contos, escrevia sobre tudo e mais alguma coisa, “desde ligações a eventos da experiência quotidiana”, a ficção cientifica, “algo por que me comecei a interessar desde cedo.” Este interesse pela ficção cientifica explica-se, conta, porque lhe interessa “a concretização das possibilidades”. Desenvolve esta ideia dizendo que “se calhar o que me interessa mais é a expansão do conhecimento tendo em vista a concretização desse conhecimento e não tanto a ideia escapatória de criar uma realidade alternativa e diferente do que está a acontecer.”

É licenciado em Línguas e Literaturas Modernas e está a acabar o doutoramento em Estudos Literários mas começou tarde os estudos superiores: “quando acabei o secundário estive 7 anos sem estudar, a trabalhar em contabilidade e administração.” Pergunto pela razão desta pausa, e explica que cresceu num meio pequeno da zona de Sintra e que a “ideia de começar a trabalhar o mais cedo possível, constituir família, por aí fora” era o que fazia mais sentido naquele contexto.

Fez o Curso Tecnológico de Administração e experimentou então várias profissões no início da idade adulta, desde telemarketing até ao trabalho de segurança na receção do Instituto Geográfico Português, “uma experiência muito interessante porque passava muito tempo sozinho e tinha tempo para pensar. O Linhas de Hartmann surge, em parte, aí.”

Leitor de poesia desde pequeno, sobretudo por influência dos programas escolares mas também da carrinha da Gulbenkian que passava por Sintra, acabou por ser influenciado por um poema específico de António Ramos Rosa para sair de um escritório de contabilidade e começar os estudos superiores: “deparei com aquele poema do Ramos Rosa "Poema do Funcionário Cansado" e foi uma chapada de realidade porque, às tantas, tem uns versos, uma parte em que ele diz "a minha alma não acompanha a minha mão/ Débito e Crédito Débito e Crédito", e era exatamente o que estava a pensar na altura.”

Desistiu do escritório de contabilidade, saiu de Sintra para alugar um quarto no Monte Abraão, e inscreveu-se na faculdade “já com a ideia de ser professor de português.”

Tem 4 livros de poesia publicados, “aquilo que eu escrevo tem necessariamente elementos autobiográficos, coisas que aconteceram ou não”, e explica que o ato de escrever se prende com a ideia de “conseguir transformar numa coisa inteligível algo que está cá dentro de um lado para o outro” porque “o processo de escrita é em si um processo de reenquadramento.”

Como desejava quando se inscreveu na universidade, é atualmente professor de português, mas simultaneamente é membro da direção da Sociedade Guilherme Cossoul, e um dos responsáveis pela Editora Artefacto, criada em 2010.

Escreve sobretudo de noite, “gosto de escrever com noite profunda”, e não apenas poesia.

Escreveu recentemente um romance que aguarda publicação.

Diz que, por enquanto, essa necessidade de escrita, seja em verso ou prosa, ainda subsiste. “Se achar que não tenho mais nada para dizer, vou fazer outra coisa qualquer - vou tocar guitarra e cantar (risos).”

A poesia serve para quê?

Como dimensão integrante (ou não) da nossa forma de ver e experienciar o mundo, a relevância da poesia reside sempre na ordem do inominável e do inefável. Apetece responder, por isso, que ela não serve para nada, podendo servir igualmente em tudo.

Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?

“Vou atirar uma bomba ao destino”, Álvaro de Campos. Talvez não seja o verso mais politicamente correto ou sensato nos tempos que correm.

Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?

A nacionalidade é uma coisa que me diz pouco, na medida em que, historicamente, opera fenómenos de encerramento ou imposição, em vez de abertura. Neste capítulo, prefiro sempre pensar em termos universais. Se não fosse um poeta terráqueo, ver-me-ia certamente como um de outro planeta mais ameno.

Um bom poema é...

Para mim, aquele que me traz algo de novo (um reposicionamento mental, emotivo), em vez de me confortar naquilo que eu já sabia ou conhecia anteriormente.

O que o comove?

A infância recuperada em alguns instantes do quotidiano caótico, o amor, a proximidade da morte, algumas oferendas desinteressadas.

Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?

Não um, mas vários. Enviaria os poemas da antologia Rosa do Mundo — 2001 poemas para o futuro. Para além de ser um livro belíssimo, rivaliza em peso e volume com sebentas de aglomerados económico-financeiros e outros desses compêndios mais tristonhos.

Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?

Desconfio de epitáfios, tanto quanto da maior parte dos rituais elegíacos. Deixei-o escrito há uns anos num livrinho de poesia: “Quando eu morrer, enterrem o caixão longe do meu corpo”.

POESIA Paulo Tavares leu o poema 'Em Berlim, O Inverno', da sua autoria, e escolheu um poema de “O Massacre dos Inocentes – uma antologia”, para ser lido por Raquel Marinho