JOGOS OLÍMPICOS

A despedida madura do nosso recordista olímpico que ninguém conhece (mas devia)

FESTA João Rodrigues (à direita) na cerimónia de abertura, deslumbrado com os fogos de artifício. Ao seu lado os irmãos Jorge e Gustavo Lima FOTO D.R.

FESTA João Rodrigues (à direita) na cerimónia de abertura, deslumbrado com os fogos de artifício. Ao seu lado os irmãos Jorge e Gustavo Lima FOTO D.R.

Talvez não saiba o nome dele, mas João Rodrigues é um recordista português: participou em sete Jogos Olímpicos, caso único entre nós. Mas a experiência do Rio de Janeiro foi única. Enquanto o velejador pensava na competição, os pais fugiam de casa, acossados pelo fogo no Funchal. Estas foram umas Olimpíadas de emoções fortes. As últimas, as mais bonitas mas também as mais poluídas. E ele já fez uma promessa: “Quero ficar no Rio até fecharem a porta da aldeia olímpica”. Um depoimento de despedida: maduro, sincero, bonito

TEXTO CHRISTIANA MARTINS

Ele é o mais. O atleta com mais idade: 44 anos. O português que participou em mais Jogos Olímpicos (Barcelona, Atlanta, Sidney, Atenas, Pequim, Londres e agora o Rio de Janeiro). E desta vez até mereceu a honra de levar a bandeira de Portugal na cerimónia de abertura do evento.

Ele é o velejador João Rodrigues, que acabou a sua categoria em 11º lugar e falou ao telefone com o Expresso para contar em detalhe como foi vivida a sua última experiência olímpica. Nesta conversa, transcrita na primeira pessoa exatamente como decorreu, não falta nada, nem os atrasos na ligação devido ao complicado trânsito do Rio de Janeiro, nem a partilha da mensagem dos pais em pleno incêndio do Funchal a saírem de casa pensando que tudo ardia com o fogo na cidade.

Muita coisa fez destes Jogos Olímpicos algo especial. Primeiro, do meu ponto de vista pessoal, foi muito difícil cá chegar. Consegui a qualificação in extremis, mesmo na última oportunidade possível. Para mim, foi como voltar ao início, como se encerrasse um ciclo, porque a qualificação para os jogos de Barcelona também tinha sido muito difícil - o fator emocional foi ainda mais forte desta vez.

Além disso, o facto de as Olimpíadas terem sido no Rio de Janeiro também tornou tudo muito especial. Até porque há algo que nunca mais se vai repetir na nossa vida: participar nos Jogos Olímpicos num país de língua portuguesa. E não é à toa que esta cidade é chamada “maravilhosa” - é indiscutivelmente bonita. O cenário das competições de vela, na Baía de Guanabara, era absolutamente maravilhoso.

Quanto à água onde competimos, tenho de dizer que estava bem menos poluída do que há cerca de dois meses, quando eu tinha estado na cidade em estágio de preparação. Um jornalista brasileiro explicou-me que foram colocadas barreiras afastadas da zona de competição que impediram os plásticos de se aproximar. Mas é um engano.

A baía ainda está incrivelmente poluída e, para mim, este é o grande falhanço destes jogos: não se ter aproveitado esta oportunidade para limpar a Baía. É agoniante para quem veleja, mas é uma derrota para todos nós seres humanos. No fundo, o que a organização fez foi tapar o sol com uma peneira porque os plásticos vão continuar lá, vão demorar anos até se desintegrar, vão entrar na cadeia alimentar da vida marinha e nós vamos comer peixes que comeram aqueles plásticos. E é horrível pensar nisso porque o problema vai regressar.

FOTO NIC BOTHMA / EPA

FOTO NIC BOTHMA / EPA

Não quero falar muito dos aspetos negativos do Rio de Janeiro, acho que não é altura para isso, mas sei que é preciso tocar em pontos que foram muito divulgados antes dos jogos. Eu nunca me senti inseguro na cidade, mas também nunca fiz nada para provocar uma situação de risco. Desde 2006 que venho ao Rio de Janeiro e nunca fui assaltado, mas também não uso anéis, relógio, telemóvel e procuro usar as roupas mais simples que tiver. Há um ano até entrei sozinho numa favela — que agora, por aqui, diz-se comunidade — e não me aconteceu nada. Quem vem ao Rio e olha para a realidade não se pode espantar com a situação. A desigualdade social é enorme e é compreensível que uma pessoa que viva na pobreza sinta revolta quando vê tanta opulência a passar-lhe à frente.

Quando os Jogos Olímpicos acabarem, acredito que os cariocas que nada tiveram que ver com o evento até se sintam aliviados, sobretudo devido ao trânsito. As Olimpíadas complicaram-lhes muito a vida, sem dúvida. Era impressionante quando nós, nos autocarros da organização, íamos nas vias de circulação exclusiva a 90 km/h e olhávamos para o lado e víamos os automóveis parados em filas intermináveis. Para os habitantes da cidade, deve ter sido difícil de suportar. Quando eu falava com eles, percebia que tinham orgulho em albergar o maior evento desportivo do mundo, mas também sentia alguma revolta pelos casos de corrupção e de dinheiro mal gasto.

Houve muitas promessas que ficaram por cumprir, promessas que se revelaram vãs. Por exemplo, muitas das infraestruturas desportivas tinham uma aparência de terem sido terminadas em cima da hora. A sensação que ficava quando chegávamos é que não houve tempo para testar as construções. Mesmo nos nossos apartamentos da aldeia olímpica, embora não fosse nada grave, as correções necessárias foram feitas depois de já estarmos lá.

FOTO INÁCIO ROSA / LUSA

FOTO INÁCIO ROSA / LUSA

Mas é preciso lembrar o que de muito bonito aconteceu. Como a cerimónia de abertura. Nós, os portugueses, estávamos absolutamente eufóricos. Desde que saímos da aldeia olímpica até chegarmos ao Maracanã, todos os brasileiros que encontrámos nos saudaram. Foi lindo! Foi inacreditável a quantidade de pessoas que gritava por Portugal. Foi uma verdadeira festa. Quando entrámos no estádio, já estávamos em êxtase. Depois, ouvirmos aqueles milhares de pessoas a chamar por Portugal foi indescritível. O estádio inteiro levantou-se connosco. Foi uma verdadeira chuva de estrelas! Quem melhor expressou esta reação dos brasileiros foi o Presidente da República, na receção que deu no consulado de Portugal. Ele disse que a ligação entre Brasil e Portugal é como a relação de um filho que se tornou gigante, maior do que o pai, mas que ainda olha para o pai com carinho. É isso mesmo.

Os atletas portugueses nunca foram vaiados, pelo contrário. Os brasileiros acolheram-nos. Nunca sentimos qualquer tipo de animosidade. Claramente, o Rio de Janeiro foi o lugar onde nos podíamos sentir mais perto de casa. A beleza da cidade foi outro fator de motivação. Eu mesmo, confesso, já tinha prometido parar com os Jogos Olímpicos depois de Londres, mas, em 2009, quando soube que os próximos seriam no Rio, não consegui manter a promessa. Este local é único e garanto que se não tivesse sido aqui, já eu tinha parado de competir.

Quanto a Portugal, não acredito que tenha havido um único atleta que não se tenha empenhado ao máximo. Ninguém envergonhou o nosso país

Esta equipa de atletas também foi especial. Houve grande espírito de entreajuda e foi possível sentir que Portugal está a conquistar maior cultura desportiva. O público já começa a perceber o penoso percurso que traz os atletas até às Olimpíadas. Para os dez mil atletas que conseguem chegar, há milhões que queriam, mas ficam pelo caminho. Estar aqui já é uma grande vitória. Conquistar esta compreensão é um processo lento, mas a reação das pessoas aos lugares conquistados pelo Nélson Évora e pelo Fernando Pimenta, ficando felizes pelo empenho que eles demonstraram, mostra que Portugal está a melhorar. E que as pessoas perceberam que nas situações em que perdemos as medalhas por detalhes, quem fica com o maior sabor amargo na boca somos nós, os atletas.

No que me diz respeito, ter acabado na décima primeira posição geral foi uma forma muito bonita de encerrar a minha participação olímpica. Houve momentos em que pensei que não conseguiria ficar entre os vinte primeiros e houve regatas, muito lindas, em que fiquei entre os dez primeiros. Na última competição, de despedida, fiquei na sétima posição. Fiquei muito feliz. Eu não era capaz de fazer melhor do que fiz. Saio dos Jogos com a sensação de dever cumprido. Quanto a Portugal, não acredito que tenha havido um único atleta que não se tenha empenhado ao máximo. Ninguém envergonhou o nosso país. E essa é a beleza do desporto: de cada vez que alguém chora de felicidade por ter vencido, há alguém triste por ter perdido. E que também merecia a vitória.

Eu vou ficar no Rio de Janeiro até fecharem a porta da aldeia olímpica. Enquanto houver espaço, eu fico! Eu quis ficar para acompanhar os meus colegas. É a minha última oportunidade como atleta e quis viver isso da forma mais intensa que fosse possível. Não tive oportunidade de ver o Usain Bolt em competição, mas cruzei-me com o Michael Phelps. Não lhe pedi uma selfie e nunca o faria, porque não é o meu estilo, mas fiquei contente em vê-lo. Também vi o Gazol da equipa espanhola de basquete.

Os meus últimos dias serão passados a arrumar o equipamento em contentores. Quero muito ir assistir à final de K4 no sábado e só se me acontecer algo não estarei na cerimónia de encerramento. Não tenho ido às festas, mas ouvi dizer que têm sido muito boas. Quem sabe ainda dê tempo. Depois que as competições de vela acabaram, fomos jantar todos juntos, mas nós não estamos aqui de férias. O que eu quero mesmo fazer, antes de partir, é subir a Pedra da Gávea. Já fiz isso duas vezes.

Sei que vou encontrar a Madeira queimada pelo incêndio. Não tinha percebido o que se passava. Vou contribuir para a recuperação

Quando voltar, vou tirar férias e depois decido o que irei fazer. Agora, não faço a mínima ideia. Em 2006, quando decidi abandonar Engenharia, foi assim que fiz, dei-me ao luxo de não fazer planos para o futuro. Quero voltar para a Madeira. Já recebi convites de trabalho em Portugal e fora, no desporto e na Engenharia. O mundo é a minha aldeia.

Sei que quando voltar vou encontrar a Madeira queimada pelo incêndio. Não tinha percebido o que se passava até receber uma mensagem dos meus pais e do meu irmão. Quando cheguei aos Jogos, desliguei-me, desliguei o telemóvel, não via notícias, concentrei-me na competição. Até que os meus pais disseram que estavam a sair de casa, com medo do fogo. Foi angustiante estar tão longe e ver a ilha a arder. Mas sei que das cinzas renasce a Fénix e o povo madeirense é resiliente, tem força para reagir. Eu vou contribuir para essa recuperação. Mas, sobretudo, espero que se aprenda como evitar que uma situação tão grave como esta volte a acontecer. A hora é agora.