TURQUIA

A diferença entre um gesto prudente e uma resposta obediente

FOTO REUTERS

FOTO REUTERS

“A melhor maneira de derrubar” este presidente “é através de eleições, não com tanques nas ruas”. As lições e ilações do caso turco - ou uma reflexão sobre a maturidade e sofisticação políticas

TEXTO HELENA BENTO

Quatro dias após a tentativa de golpe de Estado levada a cabo por um grupo de militares contra o Governo do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, ainda persistem muitas dúvidas. Porque é que a população turca, mesmo aqueles que têm sido perseguidos pelo presidente - jornalistas, opositores políticos e curdos -, respondeu em massa ao apelo nervoso de Erdogan, saindo às ruas em sua defesa e enchendo a praça Taksim, em Istambul? Porque é que, além de se ter reunido nas ruas não só de Istambul como também de Ancara, capital do país, erguendo bandeiras turcas e gritando pelo nome de Erdogan, a população, numa manifestação inesperada de apoio ao presidente, decidiu impedir o avanço dos tanques e reter os militares que neles seguiam?

Mais: porque é que todos os partidos da oposição, incluindo o curdo, principal alvo do impiedoso Erdogan, decidiram condenar, quase em uníssono, um golpe que pretendia “restaurar a ordem constitucional, a segurança, as liberdades e os direitos humanos”? As dúvidas acumulam-se. E agora? O que vai acontecer? O que esperar de um presidente que não só prometeu “mão pesada contra os golpistas”, como se antecipou e ordenou já a detenção de cerca de 3000 militares, incluindo altas patentes, e o afastamento de 2800 juízes, numa limpeza que se imagina fria e a fundo?

FOTO REUTERS

FOTO REUTERS

Em entrevista ao Expresso, Nader Hashemi, diretor do Center for Middle East Studies da Universidade de Denver, no Colorado (EUA), ajuda a responder a algumas das questões sem resposta. Na opinião deste especialista, a população turca manteve-se ao lado de Erdogan, deixando os militares revoltosos completamente desamparados, “porque sabe que a melhor maneira de o derrubar é através de eleições, não com tanques nas ruas”.

Ou seja, o apoio declarado ao presidente turco por parte dos seus opositores tradicionais foi mais um gesto racional e prudente do que uma resposta imediata e obediente ao seu apelo. “Essas pessoas revelaram uma grande maturidade e sofisticação políticas, afirmando um claro compromisso com os princípios da democracia. Os partidos da oposição sabem que um governo liderado novamente pelos militares vai simplesmente agravar a crise de democracia do país”, diz Nader Hashemi, acrescentando que, “por pior que Erdogan tenha sido nos últimos anos para a democracia, um governo militar seria ainda pior do que isso”.

Autor de várias obras sobre o Médio Oriente, entre as quais “Islam, Secularism and Liberal Democracy” e “The Syria Dilemma”, Nader Hashemi considera que os “verdadeiros heróis, as pessoas que verdadeiramente merecem ser reconhecidas e homenageadas”, são precisamente “as que integram os partidos da oposição e os jornalistas que, sendo constantemente vítimas das políticas autoritárias de Erdogan, ainda assim conseguiram perceber que um golpe militar bem-sucedido tornaria as coisas muito piores para toda a gente”.

Joseph Szyliowicz, professor na Josef Korbel School of International Studies, também naquela universidade norte-americana, tem a mesma opinião. “Não tenho dúvidas que um golpe militar iria agravar as divisões que já existem e limitar ainda mais a possibilidade de manter algum tipo de regime democrático no país”.

»

Esta tentativa de golpe vai fortalecer a posição de Erdogan e a ambição de se tornar ainda mais poderoso

Fracassada a tentativa de golpe militar na Turquia, comentadores e analistas temem agora o pior. Nader Hashemi é um deles. “Nos próximos dias, meses, Erdogan vai aproveitar para consolidar o seu poder e controlo” sobre inimigos e restantes vozes dissidentes que, de mais a mais, acusam-no de perseguição, repressão e violência. Ainda há menos de um mês, as autoridades turcas detiveram três ativistas pela liberdade de expressão, incluindo o representante turco dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF), acusados de fazerem “propaganda terrorista”.

O chefe de Estado e ex-primeiro-ministro, diz Hashemi, “vai aproveitar o falhanço do golpe para continuar a fazer aquilo que tem vindo a fazer, que é concentrar todos os poderes em si”, mas agora com mais autoridade. “Creio que o seu grande plano é tentar reescrever a Constituição e fazer da Turquia um regime presidencialista”. Joseph Szyliowicz concorda: “Não duvido que esta tentativa de golpe vá fortalecer a posição de Erdogan, dando-lhe oportunidade de concretizar a sua ambição de se tornar ainda mais poderoso. Acredito que o presidente vai tentar limitar ainda mais a liberdade de imprensa e de pensamento no país, colocar em causa a independência do sistema judicial e destruir tudo o que seja oposição”.

Estará Erdogan a perder popularidade?

FOTO REUTERS

FOTO REUTERS

Tem-se dito que, apesar da enorme manifestação de apoio a Erdogan, nos momentos que se seguiram à tentativa de golpe de Estado, o presidente turco tem vindo a perder popularidade junto dos turcos, num país com muitas feridas só em parte cicatrizadas e palco de atentados terroristas com demasiada frequência. Há até quem diga que esta tentativa de golpe desajeitada teve mão de Erdogan, com o objetivo de reforçar a sua autoridade.

Joseph Szyliowicz não acredita nesta perda gradual de poder do líder, mas reconhece que o golpe militar veio mostrar “o quão polarizada é atualmente a sociedade turca e os desafios que Erdogan terá de enfrentar para fazer da Turquia, tal como é seu objetivo, uma potência regional”. O professor, especialista em política comparada e política do Médio Oriente, antecipa um cenário de “novos conflitos no país entre os grupos da oposição, que não estão necessariamente unidos, e o Governo do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento)”. Tal, diz Szyliowicz, irá ter “consequências não só para o país” - económicas, sociais e políticas - como “em termos regionais e globais”.

»

Hilary Clinton pode vir a ser impedida de implementar uma zona de exclusão aérea, caso seja eleita

Berkay Mandiraci, especialista turco do think-tank International Crisis Group (ICG), acredita que o que aconteceu na passada sexta-feira “pode vir a afetar a relação entre os Estados Unidos e a Turquia”, sobretudo se Erdogan continuar a insistir na extradição do imã Fethullah Gülen, inspirador de um movimento político, que vive desde 1999 na Pensilvânia e que o Presidente turco acusa de estar por trás da tentativa de golpe de Estado.

Investigador do Center for Middle East Development da Universidade da Califórnia, Eric Bordenkircher considera que a tentativa de golpe de Estado vai ter implicações na campanha dos EUA contra o Estado Islâmico. “Hilary Clinton pode vir a ser impedida de implementar uma zona de exclusão aérea, caso seja eleita presidente do país”. O golpe, diz ainda o especialista, “pode dar à Turquia vantagem sobre os Estados Unidos”, que, “preocupados com a sua própria segurança”, poderão vir a “olhar para o lado na presença de tentativas claras, por parte de Erdogan, de aumentar a repressão sobre a população turca”. Cabe aos democratas turcos tentar “dominar, conter e fazer recuar o regime autoritário do presidente turco”, conclui Nader Hashemi.