ARQUIVOS DA CIA
Kissinger sobre os capitães de Abril: “Soberbamente organizados e bem dirigidos”
A CIA pôs agora na internet, disponíveis para fácil consulta, os seus arquivos internos até aos anos 90. Para Portugal, é uma oportunidade de revisitar a sua história recente por olhos alheios
TEXTO LUÍS M. FARIA
930 mil documentos, num total de cerca de 13 milhões de páginas. É o que a CIA acaba de pôr em linha, disponível para qualquer pessoa consultar. São os seus arquivos de cinco décadas, cobrindo desde os anos 40 até aos 90 do século passado. Há lá de tudo, desde estudos sobre fenómenos sobrenaturais e “espiões psíquicos” até programas sinistros com cobaias humanas (por exemplo, o MKULTRA, que visava desenvolver drogas para usar em interrogatórios e tortura), pesquisa sobre tinta invisível, esquemas de escutas e outras formas de espionagem, e, claro, memorandos e outros ficheiros sobre a situação política em muitos países diferentes.
A disponibilização desses arquivos, que é tipicamente americana e talvez única no mundo, tem origem numa decisão do então presidente Bill Clinton em 1995. Todos os documentos com mais de 25 anos – salvo aqueles que pudessem expor fontes ou métodos sensíveis – deviam passar a estar disponíveis ao público, por motivos de interesse histórico. A CIA demorou a cumprir a ordem. Alguns anos depois parte dos documentos ficaram disponíveis, mas para os consultar era preciso ir à CIA, onde havia uns exíguos quatro computadores disponíveis – quando o estavam de facto.
Jornalistas e outros investigadores persistiram, e em 2014 um grupo de jornalismo coletivo, o Muckrock, exigiu em tribunal, ao abrigo das leis sobre acesso a informação pública, que os arquivos da CIA ficassem efetivamente acessíveis. Em 2015 a CIA comprometeu-se a fazê-lo, mas disse que levaria 28 anos a digitalizar tudo e o resultado final seriam 1200 cd, a um custo de 108.000 dólares (101 mil euros). Foi então que um jornalista e arquivista, Mike Best, lançou uma iniciativa de crowdfunding para digitalizar os documentos. Angariou 15 mil dólares (14.000 euros), e em outubro do ano passado a CIA disse que ia colocar os ficheiros na internet, devidamente pesquisáveis num site que leva o nome de CREST (CIA Records Search Tool, instrumento de busca dos registos da CIA): www.cia.gov/library/readingroom/document-type/crest.
“Soberbamente organizados e bem dirigidos…”
Assim aconteceu agora. E a par com revelações como as acima mencionadas, há material mais prosaico. Em relação a Portugal, como seria de esperar, boa parte do que lá se encontra refere-se aos anos críticos a seguir ao 25 de Abril. Ainda antes, em setembro de 1973, um memorando dirigido ao então secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, faz o ponto da situação no que toca à guerra colonial.
Referindo os 200 mil soldados em África e o gasto de cerca de um quarto do orçamento nacional nesse esforço, o texto aludia às pressões de países ocidentais para que Portugal se retirasse das colónias e a ausência de qualquer indicação de que isso estivesse em vias de acontecer. “Embora alguns oficiais admitam em privado que a Guiné portuguesa possa em breve tornar-se uma causa perdida”, frisa o documento. A situação em Moçambique era melhor, pois, embora a Frelimo recebesse apoio da China e a URSS, “não conseguiu agarrar uma base popular ampla como movimento nacional”. Já em Angola o problema para os rebeldes era a rivalidade entre os dois grupos principais. Em suma, concluía o memorando, a situação não devia mudar num futuro próximo.
No final de abril do ano seguinte, como sabemos, mudou. Logo no dia 29, Kissinger enviou ao presidente Nixon um memorando em que descrevia o golpe de estado:” “Soberbamente organizados e bem dirigidos, os insurrectos apanharam de surpresa o governo. As forças leais ao regime ofereceram escassa resistência, e após fugirem para a sede da guarda nacional, Thomaz [sic], Caetano e vários outros ministros concordaram após umas horas de negociação irem para o exílio nas ilhas da Madeira. Até agora, o novo governo parece estar completamente em controle”.
Kissinger encomendou aos serviços um estudo que devia “projetar as tendências por via das quais forças comunistas” podiam “vir a dominar outras forças em Portugal”. “A seguir o estudo deve considerar o impacto dessas tendências sobre os nossos interesses, incluindo nas relações bilaterais com os EUA, a NATO, acesso às bases nos Açores e orientação ocidental da política externa portuguesa, e descrever as opções abertas ao governo dos EUA para proteger os seus interesses.”
Informação incompleta sobre as diversas unidades militares
A CIA e a imprensa não tinham uma visão suficientemente pessimista para Kissinger. Em 30 de setembro de 1974, escrevia ele num texto interno: “Na minha opinião, esta avaliação fica muito à margem da realidade. É tranquilizadora no tom, tende a minimizar a dimensão da ameaça à esquerda, e em geral é o tipo de apreciação que se esperaria do New York Times. Os eventos em Portugal parecem demonstrar com clareza que a situação se está a orientar inexoravelmente numa direção esquerdista, com os comunistas e os socialistas de esquerda numa posição de controlo. Isto foi precisamente o receio expresso por Spínola quando se encontrou com o Presidente Nixon em junho passado nos Açores. Há todas as razões para crer que as forças moderadas em Portugal sofreram um sério revés e que a posição dos elementos extremistas foi substancialmente reforçada. Os comunistas e os socialistas parecem ser as únicas forças políticas organizadas em Portugal.”
Kissinger acrescentava que o general Vernon Walters, diretor adjunto da CIA, concordava com ele e estava preocupado com o sentido geral das avaliações da agência. Mas compreendia-o por não querer “ignorar unilateralmente os pontos de vista dos seus avaliadores”. Os eventos do ano que seguiu, com a acentuação do PREC e o Verão Quente, pareceram dar razão ao secretário de Estado. A 10 de outubro de 1975, ele recebia um memorando de quatro páginas onde se referia: “o governo Azevedo encontra-se sob forte ataque, em especial da extrema-esquerda, e a crescente politização e quebra da disciplina nas forças armadas levantam questões serias sobre a viabilidade do regime.”
Outras fontes de instabilidade: “as atividades subversivas e manifestações do Partido Comunista Português (PCP) e grupos de extrema-esquerda; agravamento dos problemas sociais e económicos, que são exacerbados pelo influxo de refugiados angolanos.”
“As probabilidades de violência espalhada são aumentadas pela incapacidade do governo de Lisboa em impor ordem”, acrescentava o memorando. “A nossa informação sobre a lealdade de unidades específicas é incompleta, mas muitas unidades do exército em Lisboa - com exceção dos comandos - parecem simpatizar com diversos grupos esquerdistas. A norte de Lisboa, o exército tende a apoiar o governo, mas mesmo aí organizações de extrema-esquerda, tal como o Soldados Unidos Vencerão, têm conseguido subverter as ordens de comandantes em algumas unidades. A região militar do sul está dividida e provavelmente não terá um grande papel num conflito.”
A Marinha era tida como próxima da esquerda, em termos gerais. A força aérea seria mais conservadora, “mas alguns sargentos esquerdistas com acesso a aviões poderiam sabotar uma resposta a violência civil ou a uma tentativa de golpe”. ”Nem a polícia nem a GNR, embora possam apoiar o governo, podem manter efetivamente a ordem numa crise, dado que ambas têm falta de armas.”
“O talento português para acomodações de última hora que evitem confrontos…”
Os motivos de apreensão da CIA eram claros: "Apesar do recente revés do PCP com a demissão do seu aliado, o ex-primeiro ministro Vasco Gonçalves, e o seu papel reduzido no novo governo, ele continua a ser uma força poderosa e mantém uma influência desproporcionadamente forte nos media organizados e dentro do sindicalismo. Embora os comunistas ainda participem formalmente no governo, ao mesmo tempo apoiam manifestações contra ele é fomentam instabilidade nas forças armadas. É a extrema-esquerda, porém, que tem sido mais ativa a protestar e a forçar confrontações que nalguns casos conduziram a violência. Um fator agravante é a ampla quantidade de armas que os grupos comunistas e de extrema-esquerda têm ao seu dispor".
Também era notado que "cerca de 175.000 refugiados angolanos já voltaram para Portugal. A maioria deles são politicamente conservadores e hostis a líderes militares e civis de esquerda que consideram terem vendido os seus interesses em África. Muitos têm pequenas armas. A sua frustração aprofundar-se-á com a incapacidade do governo para lidar com os seus problemas, e poderão sentir que têm pouco a perder em desafiar o governo. Os refugiados, muitos dos quais têm raízes no Norte, poderão, juntamente com outros conservadores nortenhos, formar uma força explosiva para conflitos com elementos esquerdistas. Grupos de exilados portugueses de direita em Espanha estão a angariar apoio para refugiados regressados".
Em suma, "a presente situação volátil pode levar a qualquer uma de várias direções". Uma possibilidade seria "um governo de esquerda estar formalmente no poder em Lisboa com um estado de anarquia noutras partes do país". Outra, um golpe de direita, teria probabilidades "extremamente limitadas de sucesso, dada a falta de armas, pessoal, fundos e apoio popular em Portugal". A terminar este quadro inquietante, curiosamente, uma nota otimista: "O talento português para acomodações de última hora que evitem confrontos finais pode mais uma vez afirmar-se, e afastar qualquer resolução definitiva destas incertezas, pelo menos durante algum tempo".
Eanes: “imensamente popular”, “um líder austero mas atencioso”
O 25 de novembro resolveu as incertezas de uma forma mais decisiva – e tranquilizadora – do que os analistas americanos esperavam. Nos anos seguintes, a agência manteve-se atenta à situação no nosso país, o regime democrático tinha-se instalado e estabilizado. Grande parte das avaliações podem ser descritas como de rotina. Por exemplo, quando o governo Balsemão estava a chegar ao fim, a CIA notava os problemas prementes do défice e da inflação, assinalava a preferência de Mário Soares por um acordo com o PSD, e previa que “ um falhanço espetacular do próximo governo pode criar o cenário para a reemergência de Eanes [um presidente “imensamente popular e que é visto pela populaça como um líder austero mas atencioso acima dos jogos da política partidária”] como um ator político ativo, possivelmente à cabeça de um novo partido ‘presidencialista’”.
Nada disto seria uma grande novidade para os portugueses mais atentos à política. Também de rotina eram as observações feitas em vésperas da visita do presidente Ronald Reagan a Portugal, em 1985. As relações entre os dois países eram boas e haviam poucos temas controversos, dizia a CIA. Tanto o presidente Eanes como o primeiro-ministro Soares “deverão apoiar os pontos de vista de Washington sobre a América Central, a IDS [Iniciativa de Defesa Estratégica] e as negociações de armamento em Genebra. Eanes tem uma perspetiva ligeiramente diferente da dos EUA em relação a assuntos do sul de África. As preocupações bilaterais deverão focar-se em pedidos de mais ajuda militar e investimento privado, e num apelo para revogar o pedido americano para restrições voluntárias a exportações de têxteis".
Anos depois, no início de 1986, a CIA analisava a campanha eleitoral em curso para a Presidência: “Soares, inesperado sobrevivente na primeira volta das eleições presidenciais, recebeu apoios surpreendentes à sua candidatura na segunda volta, por Zenha (apoio explícito), Pintassilgo (apoio implícito) e o líder comunista Cunhal ("o menor de dois males").
Matematicamente, isto sugere que Soares poderá vencer [...] mas a política não é matemática [...] Terá um certo número de votantes de direita apoiado Soares na primeira volta para bloquear a extrema-esquerda e, tendo-o feito, voltarão agora a Freitas? [...] O que fará Eanes agora, e tem importância? [...] Mas Soares mostrou outra vez como é grande em campanha, E Freitas e o primeiro-ministro Cavaco Silva devem estar preocupados".
A história deu razão à CIA. E no mesmo memorando vinha outra previsão acertada, não menos óbvia: "O confronto de vontades políticas não vai terminar com a eleição de um presidente a 16 de fevereiro".