ATENTADOS TERRORISTAS

Quais são os limites para a comunicação social mostrar o horror?

NICE Há imagens violentas. Mesmo quando não mostram violência literal FOTO GETTY

NICE Há imagens violentas. Mesmo quando não mostram violência literal FOTO GETTY

O atentado em Nice tem, à semelhança de outros mais recentes, gerado um debate sobre o papel dos meios de comunicação social na cobertura noticiosa da barbárie, especialmente num contexto onde a internet e as redes sociais também a mostram - e por vezes a propagam. Divididos entre o dever de informar e o de respeitar a sensibilidade das vítimas e do público, os jornalistas deparam-se com escolhas difíceis na seleção de imagens e outros conteúdos. É um dos dilemas eternos do jornalismo: se o horror não for mostrado, as pessoas saberão o horror que foi cometido? E qual é o limite para mostrar o horror? Académicos, especialistas, jornalistas, regulador e diretores de informação explicam ao Expresso o seu ponto de vista

TEXTO MARIA JOÃO BOURBON

Um camião de 19 toneladas usado como arma contra a multidão. Num primeiro momento, ninguém parece saber de onde surge ou o que está ali a fazer, mas rapidamente o cenário festivo e ameno da Promenade des Anglais, em Nice, se torna palco de imagens de terror. O ‘camião-arma’ vai avançando em ziguezagues, varrendo tudo no seu caminho, matando o máximo de pessoas possíveis. Como se fossem meros peões de um jogo cujas regras não conseguimos entender. As imagens são chocantes, brutais – e há vários vídeos, alguns reproduzidos pelos mass media, que captam esse momento.

O atentado em Nice no dia da tomada da Bastilha, à semelhança de outros (como o de Paris, Bruxelas e Istambul), tem gerado um debate sobre o papel dos meios de comunicação social na cobertura noticiosa do horror e da tragédia. Não só pela difusão dos vídeos e das imagens, mas essencialmente pela transmissão e publicação do horror, muitas vezes a reboque de imagens amadoras que vão chegando às redações: cadáveres espalhados ao longo do percurso, feridos estropiados ou ensanguentados, crianças mortas. Imagens que nos levam a questionar até que ponto podem ir os jornalistas na sua missão – no seu dever – de informar. Quais os limites entre o dever de informar e o de respeitar a sensibilidade das vítimas e do público? Onde devemos traçar a linha entre informação e voyeurismo?

Em Portugal, a cobertura noticiosa da CM TV do atentado de Nice motivou várias queixas à Entidade Reguladora para a Comunicação Social, pela brutalidade das imagens difundidas. Em França, a transmissão da barbárie chegou inclusivamente a originar um pedido de desculpas público pelo grupo France Télévision, na sequência do repúdio de vários espectadores e jornalistas em relação à sua cobertura noticiosa. No centro de todas as polémicas estava a curta entrevista de um jornalista da France 2 a um sobrevivente, filmado junto ao cadáver da mulher, na qual este perguntava: “Boa noite, senhor, acaba de perder a sua mulher. Qual é a sua reação, em direto para a France 2?”

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Quando a informação não contribui para valorizar o interesse informativo, estamos na presença de sensacionalismo

“Uma das regras básicas do jornalismo, tal como na medicina, assenta na ideia que os jornalistas não devem causar prejuízo, não devem piorar as coisas: para a família da vítima ou para o público”, explica ao Expresso Walter Dean, jornalista de longa data e diretor do Committee of Concerned Journalists. Para o vice-presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), Alberto Arons de Carvalho, as perguntas do jornalista da France 2 revelam falta de sensibilidade, o que “constitui uma clara violação do código deontológico dos jornalistas”. “Quando a informação não contribui para valorizar o interesse informativo, estamos na presença de sensacionalismo”, completa

É por este motivo que a professora de Ciências da Comunicação da Universidade Nova Carla Baptista frisa a necessidade de o jornalista – num exercício de respeito pela dignidade humana – ser “capaz de se imaginar e colocar no lugar do outro”, seja o outro a “vítima de violência ou catástrofe” ou o “espectador vulnerável e sujeito sem aviso a imagens traumáticas”. “Só refiro este aspeto porque, infelizmente, não parece estar a ser capaz de gerar consensos mínimos entre os jornalistas sobre quais são as imagens que devem ser mostradas nas reportagens televisivas sobre o atentado em Nice e outros casos semelhantes.”

FOTO GETTY

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Um dos deveres dos jornalistas, além de relatar às pessoas aquilo que aconteceu, é explicar-lhes como aconteceu, porque aconteceu, onde e em que contexto. E assim “parte do trabalho do jornalista não é apenas dizer às pessoas o que aconteceu, mas também partilhar com eles provas, que muitas vezes são visuais”, adianta Walter Dean. “Neste caso gera-se aquilo a que chamamos um trade-off: tentamos não causar prejuízo a ninguém, mas haverá a um certo ponto um bem público maior.” Similarmente, Arons de Carvalho recorda que existem vídeos ou fotografias “em que o interesse público se sobrepõe à defesa dos públicos mais sensíveis”, já que constituem um importante elemento de prova, como foi o caso da divulgação das imagens da morte de Kadafi em 2011.

Também no caso de atentados terroristas é impossível escapar às imagens, defende o jornalista Walter Dean, uma vez que a maioria das pessoas são “aprendizes visuais”. “Várias investigações norte-americanas mostram que as pessoas que consomem notícias compreendem melhor a história se puderem ver imagens a acompanhá-la.” Na sua perspetiva, as imagens devem então ajudar a apresentar provas e a suscitar questões – como aquela do camião a ir contra a multidão, que lhe permitiu entender detalhes importantes que não conseguiria assimilar numa mera leitura. “Ajudou-me a perceber como é que um veículo conseguiu provocar tantos estragos, matando ou ferindo tantas pessoas: eu não tinha percebido quão grande era o veículo, não tinha percebido que tinha as luzes desligadas ou quão apinhada estava aquela zona...” É com base no pressuposto de que o público necessita de ver estas imagens para compreender que o diretor do Committee of Councerned Journalists assevera: “Se tivesse sido editor, teria mostrado estas imagens.”

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Se há vários mortos no atentado, se é esse o propósito do atentado terrorista, então é preciso mostrar corpos. Eu sou apologista de mostrarmos tudo São José Almeida, presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas

Além disso, como acrescenta São José Almeida, este é um método completamente inédito na Europa. “É por isso obrigação dos jornais, rádios e televisões mostrarem essas imagens da barbárie”, afirma, a título individual, a presidente do conselho deontológico do Sindicato dos Jornalistas. A também jornalista do “Público” considera que a cobertura noticiosa do atentado em Nice foi “genericamente bem feita” e diz não compreender o pedido de desculpas da cadeia de televisão francesa por ter mostrado corpos. “Se há vários mortos no atentado, se é esse o propósito do atentado terrorista, então é preciso mostrar corpos. Eu sou apologista de mostrarmos tudo. Não digo que se deva mostrar a todas as horas ou em primeiro plano, mas se não mostrarmos as pessoas não vão conseguir compreender a dimensão do horror – e torna-se mais difícil combater esse horror.”

Já a exploração de afetos, emoções, sentimentos – como entrevistar familiares de pessoas que morreram, seja no próprio dia, seja depois – “é um absurdo”, defende, acrescentando que a televisão francesa devia pedir desculpa não pelas imagens mas pela exploração de emoções. “Para informar não é preciso explorar emoções. Isso não é jornalismo, é outra coisa qualquer.”

FOTO GETTY

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Se alguns especialistas ou jornalistas defendem que no limite todas as imagens são passíveis de serem partilhadas (uma vez que o jornalismo não deve esconder informação do seu público), outros não partilham a mesma opinião. Carla Baptista considera que o público confia nos jornalistas exatamente porque quer que estes tomem alguma decisão sobre aquilo que pode ou não ser divulgado, sem os ofender a eles ou aos seus familiares.

A professora e investigadora em Ciências da Comunicação da Universidade Nova sustenta que o jornalismo transporta consigo uma herança de valores e condutas profissionais (orientação para a informação, verdade e verificação dos factos, independência, entre outros), dos quais não pode abdicar – mesmo que atualmente tenham surgido novos formatos e formas de contar uma história. Quando os jornalistas abdicam destes valores “e agem como qualquer outro produtor de informação que abunda no espaço público, estão a desprofissionalizar o jornalismo e a torná-lo irrelevante”. Ou seja, quando optam por formatos narrativos que potenciam “o direto e o não editado”, sem qualquer explicação ou enquadramento, são afastados da verdadeira missão do jornalismo.

Onde as várias opiniões convergem é na necessidade de existir uma escolha crítica e discernida das imagens que retratam a barbárie: o facto de uma imagem poder ser ou não sensível depende da imagem em si, do contexto em que está inserida, do interesse jornalístico, do enquadramento na difusão, do horário, do facto de existir ou não um pré-aviso antes da sua transmissão. E também do meio onde esta se encontra inserida, acrescenta Walter Dean. “Penso que introduzir ou não uma imagem brutal é uma decisão muito mais difícil para um programa de televisão e os jornalistas devem tomar isso em conta: se a imagem passa na televisão, o público provavelmente irá vê-la. Claro que consegue desligá-la ou mudar de canal, mas já depois de ter a ter visto.”

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Em casos de atentados como o de Nice, chegam-nos um número incrível de vídeos amadores que antes não recebíamos – e para estes definimos um critério: não passar as imagens mais chocantes Ricardo Costa

É por isso que as televisões, à semelhança de outros meios, se veem obrigadas a definir critérios e estratégias que possam ser aplicados nestas situações de “crise” e que consigam servir da melhor forma a ética e deontologia jornalística. Quando em causa está a transmissão de diretos de acontecimentos potencialmente sensíveis, existe um delay de 5 ou 10 segundos para evitar a chegada de imagens em bruto sem qualquer tipo de discernimento, explica o diretor-geral de informação da Impresa e diretor da SIC, Ricardo Costa. Esta foi uma decisão implementada após a transmissão das imagens brutais que correram o mundo na sequência do massacre de Beslan em 2004, quando os russos invadiram uma escola na república da Ossétia do Norte onde rebeldes chechenos tinham feito mais de mil reféns, provocando confrontos extremamente violentos.

Mas são as redes sociais colocam hoje novos desafios em cima da mesa. “Em casos de atentados como o de Nice, chegam-nos um número incrível de vídeos amadores que antes não recebíamos – e para estes definimos um critério: não passar as imagens mais chocantes”, adianta Ricardo Costa, acrescentando que a SIC enviou um email interno a alertar para a situação. Também a RTP utilizou este meio para recordar aos jornalistas a sua posição. O diretor de informação Paulo Dentinho conta ao Expresso que sublinhou “a necessária contenção no uso de imagens”, de forma crítica, de modo a que o meio de comunicação não fosse “um joguete” das estratégias e propaganda das organizações terroristas.

Ao receber estes vídeos amadores, o jornalista tem ao seu dispor a decisão de os editar e mostrar apenas aquilo que quer. Já no vasto universo da internet existe um sem-número de vídeos e imagens, partilhados de forma aleatória e sem qualquer critério. Olhando para este quadro, Walter Dean não tem dúvidas: “Se existirem imagens horríveis, prefiro vê-las num meio de comunicação social e não na internet, porque a informação tem uma maior tendência para ser verificada, ser real. E nunca conseguimos saber se o que vemos na internet é real.”