MIGRAÇÃO

É muito difícil ouvir estas histórias mas estamos aqui também para isso

Foto Guglielmo Mangiapane/SOS MEDITERRANEE

Foto Guglielmo Mangiapane/SOS MEDITERRANEE

Há histórias assim no nosso mundo: “Este rapaz tem o corpo marcado por cicatrizes. Ele e o melhor amigo pagaram a traficantes para os levarem de carrinha até à Líbia. Iam apertados com tanta gente, a carga era excessiva e isso diminuía a velocidade e atrasava a viagem. Então, aleatoriamente, os traficantes pegaram em algumas pessoas e dispararam. Mataram-nas. Uma delas era o melhor amigo do rapaz”. Há de ler isto e mais em baixo. Porque há histórias assim no nosso mundo

Texto Marta Gonçalves

Queimaram-no com isqueiros. Bateram-lhe com tacos. Feriram-no com facas. Atingiram-no com balas. Verteram água a ferver pelo seu corpo. Tem 16 anos. Dele não sabemos o nome, mas conhecemos um pouco da história. É natural da Somália, mas há três anos que chegou à Líbia. Foi lá que pagou a traficantes e foi também de lá que partiu para a travessia do Mediterrâneo. O seu corpo está todo marcado. As cicatrizes de quem foi torturado durante tempos que lhe pareceram infinitos estão ferrados na pele escura. Agora já está outra vez em terra. Algures em Malta, depois de ter sido resgatado pelo Aquarius, o navio operado pelas organizações não-governamentais SOS Méditerranée e Médicos Sem Fronteiras.

Tinha 12 ou 13 anos quando deixou a sua casa, fugiu da Somália com um amigo. Na Líbia, os dois foram torturados. Imploraram que os matassem, não queriam continuar a viver assim. “Os seus corpos são a prova de tudo aquilo por que passaram. Quase todos estiverem meses em cativeiro, sem água ou comida”, conta Aloys Vimard, coordenador dos Médicos Sem Fronteiras a bordo do navio. “O aterrador é que ao longo de todo esse tempo estiveram expostos a grandes níveis de violência: espancamentos, tortura - por exemplo, choques elétricos. É muito difícil ouvir as suas histórias mas estamos aqui também para isso.” Foi durante uma manhã, ainda o Aquarius navegava, que o rapaz de 16 anos contou a sua história a Aloys Vimard.

Um tripulante dá assistência a um dos migrantes resgatados. Muitos deles estavam há dias sem comida ou água Foto Guglielmo Mangiapane/SOS MEDITERRANEE

Um tripulante dá assistência a um dos migrantes resgatados. Muitos deles estavam há dias sem comida ou água Foto Guglielmo Mangiapane/SOS MEDITERRANEE

As 141 pessoas que esta quarta-feira desembarcaram – incluindo 67 menores desacompanhados – estiveram cinco dias no mar, durante quatro não sabiam para onde iam. O convés do navio tornou-se uma espécie de casa temporária, onde se criaram sombras para combater o calor. O mar estava calmo, não havia vento e isso ajudou. Os migrantes são incluídos nas tarefas diárias do Aquarius: limpeza, distribuição das refeições. A ideia é que se sintam úteis, que de alguma forma tenham normalidade e recomecem a ter controlo das suas vidas.

“Basta abrir-lhes os braços, olhá-los nos olhos e tratá-los como pessoas.” Ainda há uns dias, três mulheres da Eritreia cantavam no convés. Aloys aproximou-se. Tentaram falar, mas não se perceberam. Então cantaram apenas. E entenderam-se. “É-me impossível descrever isto.” Há guitarras, baterias e um acordeão. A música ajuda e a equipa já leva instrumentos a bordo por isso mesmo - são distribuídos pelos migrantes e ficam ali a cantar, a tocar, só a passar o tempo.

“Tentamos focar-nos nas coisas positivas. As condições a bordo são complicadas mas pelo menos não têm a vida em risco, o que já é um grande passo. Queremos que se lembrem das coisas bonitas da vida.”

“Obviamente, a Líbia também não é um porto seguro”

Quando estiver a ler este texto, já o Aquarius deixou Malta. Vai a caminho de Marselha para tratar de alguns problemas logísticos (Gibraltar retirou a autorização para navegar com a bandeira do país). Nos últimos dois meses, esta foi a segunda vez que o navio operado pela SOS Méditerranée e os Médicos Sem Fronteiras foi impedido de desembarcar pessoas resgatadas no Mediterrâneo – são três, se contarmos quando o navio quis atracar para repor mantimentos. A 18 de junho, a solução foi Valência, no sul de Espanha. Segundo a lei marítima internacional, os navios devem dirigir-se para o porto seguro mais próximo. Desta vez, quando a 10 de agosto as ONG pediram para desembarcar, Itália e Malta também negaram. O Governo espanhol disse de imediato que não podia.

“O resgate não está terminado até que as pessoas cheguem a porto seguro.” No Aquarius, primeiro contactaram as autoridades líbias, responsáveis pela coordenação das operações - responderam que não tinham qualquer local para o desembarque. “Obviamente, a Líbia também não é um porto seguro”, comenta Aloys. Em seguida, pediram ajuda a Itália e a Malta. “Disseram-nos não. Justificaram que não eram as autoridades competentes, que não coordenavam os resgates.” Decidiram ficar numa zona do mar onde pudessem esperar que lhes atribuíssem um porto. “Sabemos que a responsabilidade não é apensas de Itália ou de Malta. Por isso é que exigimos uma resposta da União Europeia.”

Quando falámos com Aloys, na imprensa internacional e nas redes sociais já era dado como certo o desembarque do Aquarius em Malta, que aparentemente tinha acabado por ceder. No entanto, ao navio ainda não tinha chegado qualquer confirmação ou ordem para navegar para o porto de Valeta. “Os governos estão prontos para fazerem logo comunicados nas redes sociais. Este é um assunto altamente politizado, mas é desumano. As pessoas que aqui estão deveriam ser as primeiras a saber o seu futuro.” Até que ao navio chegue alguma ordem, os migrantes não são informados de nada. “Não temos a certeza.”

Foto Guglielmo Mangiapane/SOS MEDITERRANEE

Foto Guglielmo Mangiapane/SOS MEDITERRANEE

A bordo do Aquarius, a tripulação tenta fazer uma atualização diária do que se passa. Quais as novidades em terra, qual o caminho que vão seguir. Querem que as dúvidas daquelas pessoas sejam respondidas. “A partir do momento que chegam a bordo, fazemos discursos com regularidade. Todos juntos e com todos os tradutores necessários. Aceitam relativamente bem o que está a acontecer e não é fácil para eles”, diz o coordenador dos Médicos Sem Fronteiras. “Nunca dizemos a ninguém para onde os vamos levar sem ter certezas. Na verdade, somos apenas um grupo de civis, uma ONG, e não quem toma as decisões. Trabalhamos sobre as ordens das autoridade marítimas.”

Bem mais de metade dos resgatados é da Somália e Eritreia. Nenhum tinha problemas de saúde graves, mas estão mal nutridos e grande parte não era assistida por um médico há muito tempo. Na verdade, há demasiado.

A bordo está um outro rapaz. Também é da Somália, também tem 16 anos e, tal como o primeiro que tem o corpo marcado por cicatrizes, não quer que se saiba o seu nome. Ele e o melhor amigo pagaram a traficantes para os levarem de carrinha até à Líbia. São quase quatro mil quilómetros, muitas vezes pelo deserto. Iam apertados com tanta gente, a carga era excessiva e isso diminuía a velocidade e atrasava a viagem. Então, aleatoriamente, os traficantes pegaram em algumas pessoas e dispararam. Mataram-nas. Uma delas era o melhor amigo do rapaz.

Cinco barcos pelo caminho

“Há um barco de madeira à deriva.” Numa noite, o Aquarius ouviu as comunicações entre a Guarda Costeira Líbia e as embarcações com mantimentos que navegam junto à costa. Ofereceram ajuda. Das autoridades responsáveis pelas operações, nenhuma resposta. Então, mudaram de rumo e dirigiram-se para o local onde podia estar o barco.

Procuraram durante toda a noite. “Saber que há um barco à deriva e não o encontrar é extremamente frustrante.” Só de manhã, marcava o relógio 11h48, avistaram a embarcação. Vinte e cinco pessoas estavam à deriva em águas internacionais, completamente desesperadas. À espera que um navio aparecesse para os resgatar. “Disseram-nos que pelo caminho cruzaram-se com pelo menos outros cinco barcos. E nós não fomos capazes de prestar assistência a esses barcos”, relata Aloys Vimard. Horas depois, mais um resgate: mais um barco de madeira sobrelotado, desta vez com mais de uma centena de migrantes.

Ao final desta sexta-feira, o Aquarius tinha a bordo 141 migrantes (73 crianças, sendo que 67 estavam desacompanhas, e duas mulheres grávidas). Desembarcaram todos na quarta-feira em Malta, que assegurou toda a logística. Posteriormente, vão ser distribuídos por França, Alemanha, Luxemburgo, Espanha e Portugal (que segundo o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, está disponível para acolher 30).

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“Continuam a ser desesperadamente necessárias soluções sustentáveis a longo prazo para o centro do Mediterrâneo. Esta é uma responsabilidade da União Europeia toda e, no futuro, ansiamos por mais exemplos concretos de solidariedade por parte dos líderes europeus. Mesmo assim, mantemos-nos gravemente preocupados relativamente à atual situação no centro do Mediterrâneo e no futuro das ações humanitárias no mar”, disseram em comunicado conjunto a SOS Méditerranée e os Médicos Sem Fronteiras, pouco depois de terem sido informados da solução encontrada para os migrantes.

Desde junho que vários têm sido os barcos de organizações não-governamentais com dificuldades em atracar em portos europeus. Ficam dias à espera. O mais mediático, e por ter sido o primeiro, foi o Aquarius, depois seguiram-se mais uns quantos, incluindo o navio Lifeline – do qual Portugal recebeu também 30 pessoas, que chegaram a 29 de julho a Lisboa e foram acolhidos pelo Conselho Português para os Refugiados, no Centro de Acolhimento da Bobadela.

Em declarações ao Expresso, fonte do Conselho Europeu louva o trabalho das ONG que “desempenham um papel crucial em salvar vidas no Mediterrâneo”. No entanto, lembra que “nenhum agente no Mediterrâneo deve procurar perpetuar o modelo de negócio usado por traficantes e contrabandistas para explorar a miséria humana.” Esse tem sido um dos problemas apontados pelas autoridades: sabendo que há barcos a salvar, cada vez mais os traficantes vão atirar pessoas das suas embarcações

“O Conselho Europeu e os líderes de todos os Estados-membros são claros nesta matéria e apelam a todos os navios que respeitem a lei internacional e não interfiram com as operações da Guarda Costeira Líbia”, refere a mesma fonte europeia.