O POEMA ENSINA A CAIR

ESCREVER E COSTURAR É A MESMA COISA

Beatriz Hierro Lopes tem 29 anos, dois livros publicados, um romance para sair, e uma prosa de respiração poética a que chama fragmentos

TEXTO RAQUEL MARINHO VÍDEO JOANA BELEZA GRAFISMO VÍDEO JOÃO ROBERTO

Estreou-se aos 17 anos na revista “Criatura”, desafiada pelo amigo David Teles Pereira, hoje um dos editores da Língua Morta. Estavam ambos na faculdade, ela em História, ele em Direito, e o desafio de David surge depois de uma conversa com Beatriz sobre a geração a que chamariam a “Geração do Silêncio“: “foi muito engraçado, porque a primeira vez que me sento com um intuito literário foi para escrever um texto que ia ser publicado.” A revista saiu, a crítica também: ”o texto tem para aí três páginas em prosa e a primeira crítica à 'Criatura' saiu no 'Jornal de Letras' e era do Nuno Júdice. Eu não me lembro do que ele dizia sobre o meu texto, só me lembro de ele me chamar poeta.” Ficou “escandalizada” com o termo, porque não se considera poeta - “eu nunca escrevi um poema”, embora reconheça a utilização de “maneirismos e recursos estilísticos próprios da poesia” e vá dizendo que, hoje em dia, lê sobretudo poesia em vez de romance ou ensaio: “no romance português, os fulanos que eu considero da minha geração estão a escrever romances que considero uma porcaria, e na poesia acontece o inverso. Há tipos da minha geração e da anterior que estão vivos e que escrevem brilhantemente.”

Gosta de ler poetas vivos, "porque são as pessoas que estão a viver ao mesmo tempo, e na mesma realidade e sociedade que eu" e, nesse sentido, confirma que procura "um diálogo" com a poesia que lê e "um olhar diferente sobre uma mesma realidade. Um encontro com a beleza inesperada do quotidiano."

Diz que não lê poesia para se inquietar mas para "despertar", e que aquilo que lê lhe traz "um estado de vigilia maior em relação à realidade, e um olhar mais minucioso sobre aquilo que me rodeia. Por conseguinte, faz com que eu tenha um material de escrita muito maior, muito mais amplo."

Beatriz Hierro Lopes acredita que tudo pode ser matéria de inspiração para escrever. E quando diz tudo, é mesmo tudo: "ainda agora estou a falar contigo e estou a passar uma camisa vermelha que era da minha mãe quando estava grávida de mim. Isto já me dá um texto. por isso vem de todo o lado, tudo é passível de ser contado, escrito." Pergunto-lhe se isso significa que tudo tem interesse e recupera a ideia da camisa da mãe que está a passar a ferro enquanto fala comigo, para continuar nas metáforas: "depois depende. Podes estar a ler um texto que é sobre o quotidiano, completamente banal, mas depois ou tem ou não tem um substrato, como se fosse a linha da baínha. Se tiver, tem um texto. E geralmente depois torna-se visível no remate. Isto realmente... escrever e costurar é basicamente a mesma coisa."

Não sabe costurar mas esforça-se por escrever todos os dias, desde o primeiro texto: "faço-o para não perder a mão. É uma necessidade mas não num sentido fisiológico, - ai agora tenho de escrever - é uma necessidade contínua, mais de sobrevivência. Da mesma maneira que respiro, escrevo."

Escreve, então, todos os dias, desde os 17 anos e muitos desses textos diários podem ser encontrados no blogue que reúne os seus fragmentos: "para escrever um fragmento preciso de ter a primeira frase. Tenho de me sentar e a primeira frase que me vem à cabeça tem de ser melódica, tem de ter som. A partir daí, aquilo que acontece a seguir, é sempre uma consequência, uma consequencia natural. Não é uma coisa planeada. Eu nos meus fragmentos nunca planeio aquilo que vou escrever, sento-me e escrevo."

Começou a ler e a escrever na antiga quarta classe porque teve dificuldades de integração na escola primária: "entrei na 1ª classe com 5 anos e era aquele tipo de aluno que ficava na última fila escondida. Consegui passar quatro anos escondida. Um dia chamaram-me ao quadro para escrever o alfabeto e eu não sabia. Sabia desenhar as letras, mas não sabia o que significavam." A mãe de Beatriz Hierro Lopes foi chamada à escola e decidiu ajudar a filha na tarefa de aprender a ler com "um texto sobre o Outono": "estava a ler e a tentar ensinar-me e eu não conseguia. E a minha mãe, desesperada, deu-me assim uma pantufada. E eu levei aquilo tão a mal que desatei a chorar num pranto." O pranto foi tão audível que a vizinha pianista apareceu a tocar à porta para saber o que se passava: "desde esse dia que ela prometeu à minha mãe que me ia ensinar a ler, a escrever, e a tocar piano, e então ensinou-me as três coisas ao mesmo tempo." Já se esqueceu da técnica do piano mas recorda a aprendizagem das notas musicais e das letras do alfabeto em simultâneo: "lembro-me de estar a aprender a ler e a escrever e ao mesmo tempo a desenhar claves de sol e a tocar." Isto acontecia durante o dia porque à noite a rotina era outra e com o pai: "ele comprou-me um óptimo dicionário de português que no final tinha um anexo sobre a história de Portugal. E então eu sentava-me ao colo dele e ele lia-me o dicionário."

O pai de Beatriz Hierro Lopes foi também importante na fase seguinte, para as primeiras leituras: "a minha mãe só me dava "Os Cinco" e "Os Sete" e os livros da Condessa de Segur e eu achava aquilo uma seca. Então, eu e o meu pai fizemos um pacto tácito em que eu leria os livros que ele tivesse na mesinha de cabeceira." Por causa deste pacto o primeiro livro que leu foi o "Pela Estrada Fora" de Jack Kerouac, e de seguida "os poetas todos da Beat Generation, e o Hemingway todo e o Jack London." Depois desse período, pelos 12, 13 anos, passou um verão inteiro na Biblioteca Municipal do Porto "porque queria ler todas as peças do Shakespeere e não tinha mais nada para fazer."

É licenciada em História, curso que quis fazer desde os 15 anos, porque gosta de narrativas: "sempre me interessou muito principalmente a história dos anónimos, a ideia de que através da história consegues chegar aos anónimos, às multidões, e através delas conseguires fixar uma visão, de alguma maneira uma visão sobre uma sociedade num determinado periodo historico." Interessam-lhe vários períodos históricos mas ultimamente tem estudado um período específico: "um dos meus passatempos é ler testamentos do Século XIX. Um testamento é um documento que te permite criar um perfil biográfico daquela pessoa porque é onde tu deixas os últimos desejos. Os testamentos permitem criar um retrato muito mais real sobre aquilo que era fundamental para aquela pessoa."

A história de ficcção, ou talvez não, que está a escrever para o romance que vai publicar em breve pela editora Alambique também se passa no século XIX portuense: "é a história de um homem que fabricava velas, e que ascende socialmente no porto do séxulo XIX, e a história da sua família ao longo do século XIX. Claro que essa família é a minha." (Risos)

A poesia serve para quê?

Para mostrar o quão belo é aquilo que não serve.

Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?

“Somos do mar como a alma é da dor ao fragmentar-se a vida.”

“Elegia Azul”, David Teles Pereira

Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?

A minha nacionalidade é um remendado de memórias cosidas por um fio imagético que dispensa idiomas.

Um bom poema é...

O que não te deixa dormir.

O que a comove?

A vida que resiste à morte e a morte que sobrevive à vida; a beleza que persiste no feio; a perfeição que desponta do que é imperfeito. A redenção, a fé e um deus. E, é claro, uma história ouvida ao acaso.

Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?

Nenhum.

Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?

Apenas o meu nome completo. Sem datas. De onde venho apenas o nome fica; e, nele, toda a história de que serei fim.

Poemas Beatriz Hierro Lopes leu o poema 'Boca', do seu mais recente livro, “Espartilho”, e escolheu um poema de Eduardo Guerra Carneiro para ser lido por Raquel Marinho