SAÚDE

“Pedir um café em chávena escaldada é algo absolutamente a abolir”

MUDAR HÁBITOS Sejam bebidas ou alimentos sólidos, o ideal é ingeri-los mornos, diz o gastroenterologista José Cotter. E há sinais que nos devem levar de imediato ao médico FOTO ALEXANDRE BORDALO

MUDAR HÁBITOS Sejam bebidas ou alimentos sólidos, o ideal é ingeri-los mornos, diz o gastroenterologista José Cotter. E há sinais que nos devem levar de imediato ao médico FOTO ALEXANDRE BORDALO

O aviso foi dado pelo Centro Internacional de Investigação sobre Cancro, alertando para a relação entre a ingestão de alimentos demasiado quentes e o aparecimento do cancro do esófago. O risco existe, como explica o presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, José Cotter, mas há dúvidas a esclarecer. Como saber o que é demasiado quente, por exemplo? Ou como se explica essa relação?

TEXTO MAFALDA GANHÃO

Portugal registou em 2014 um total de 565 casos de cancro do esófago. Não será o tipo de cancro mais frequente, mas o diagnóstico assusta por ter associado um prognóstico de sobrevivência de 15% após cinco anos. Dito de outra forma, 85% dos doentes estão mortos passados cinco anos sobre a má notícia. É por isso que José Cotter, presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia considera tão importante apostar na deteção precoce da doença e - claro - na prevenção.

Saber-se que os alimentos consumidos a altas temperaturas são um risco deve ser motivação para se alterarem hábitos, afirma, ao mesmo tempo que esclarece outras dúvidas.

Não sendo uma absoluta novidade - a possível relação entre a ingestão de bebidas quentes e o aparecimento do cancro do esófago era já considerada - qual a relevância do alerta dado na quarta-feira pela Organização Mundial de Saúde?

A declaração da OMS é a homologação de umas fortíssimas suspeitas científicas - que já existiam há algum tempo - sobre os malefícios das temperaturas elevadas sobre a parede do esófago. Estamos a falar de uma espécie de queimadura, uma agressão térmica que ajuda a promover a cancerização do esófago. Desde há muito tempo que aos próprios alunos de Medicina era transmitida esta preocupação, citando como exemplo a alta incidência deste tipo de cancro em Inglaterra, onde existe o hábito de beber chá muito quente. No fundo, a informação foi agora sedimentada em estudos muito recentes, porque até aqui havia alguma dúvida sobre se a cancerização era promovida quimicamente, pela composição e especificidades de alguns chás ou cafés, ou se o problema era mesmo a temperatura.

É, portanto, um alerta consensual entre a classe médica, que nada tem de alarmismo?

É um alerta indiscutível. E não será caso para alarmismo, mas estamos perante uma informação que deve ser considerada, para que as pessoas se desliguem de um hábito que não favorece a saúde.

Está em causa, apenas, a ingestão de bebidas quentes? Ou de qualquer alimento?

Sendo o problema a temperatura, o risco é válido para qualquer alimento, sólido ou líquido. Mas o hábito mais enraizado é beber bebidas quentes, logo, este é um dos hábitos que tem de ser combatido.

FOTO D.R.

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A ideia a reter é que as temperaturas extremas, quentes ou geladas, são de evitar. O ideal é ter o conceito de “morno” como referência

Especifiquemos a temperatura de que falamos. Como saber que estamos a ingerir algo demasiado quente?

Fala-se em temperaturas superiores a 65ºC, mas no fundo a ideia a reter é que as temperaturas extremas, quentes ou geladas, são de evitar. O ideal é ter o conceito de “morno” como referência. Portanto, nada de tomar café, chá, ou de comer também muito quente a tão portuguesa sopa. O hábito tão nosso de pedir um café em chávena escaldada, por exemplo, é algo absolutamente a abolir.

Falou dos alimentos gelados, também uma temperatura extrema. Neste caso, não há risco?

As temperaturas demasiado frias podem causar outro tipo de problemas, desde que estejam em causa ingestões em quantidades significativas. Provocam alterações térmicas que desencadeiam alterações digestivas mais imediatas. Mas no caso do risco para o aparecimento do cancro do esófago, estamos a falar de temperaturas demasiado quentes.

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Começa por existir uma agressão térmica, a partir da qual podem surgir úlceras que depois desencadeiam um processo de alterações celulares, que pode evoluir para cancro

De que forma se dá essa evolução, da lesão até ao possível aparecimento do cancro?

Começa por existir uma agressão térmica, responsável por uma espécie de queimadura da mucosa esofágica (a parede interior do esófago), a partir da qual podem surgir úlceras que depois desencadeiam um processo de alterações celulares, que pode evoluir para cancro.

O risco está associado ao hábito continuado, ou consumos pontuais de comida e bebidas quentes são, por si, já nocivos? E esse risco é retroativo, como acontece com as queimaduras solares e o cancro da pele?

O efeito acumulativo é, evidentemente, muito mais grave. Porque o problema é que quem gosta dos alimentos quentes, mantém o hábito quotidiano de os ingerir sempre quentes, de forma continuada.

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As pessoas devem estar atentas a determinados sinais que as devem levar de imediato ao médico, como uma dor torácica persistente, alterações na deglutição, a existência de refluxo persistente - a que se costuma chamar azia - ou mesmo a regurgitação de alimentos

É possível estabelecer um tempo médio entre a existência da lesão térmica no esófago e o desenvolvimento posterior do cancro?

Isso é algo que não está comprovado. Não se pode falar de um tempo médio entre a ‘queimadura’ e o aparecimento do cancro. O fator agravante, esse sim, está comprovado, e é esse que nos deve preocupar.

A sua experiência clínica já lhe dava esta perceção, da existência desta relação entre altas temperaturas e cancro do esófago?

É sempre difícil estabelecer uma relação direta, até por existirem outros fatores de risco, como o tabaco e a ingestão de álcool, que têm preocupado bastante os médicos. O grau de risco associado a cada um é algo que não se pode afirmar com rigor, mas é óbvio que havendo um somatório de riscos, o risco final aumenta também.

Quando se fala em cancro do esófago, quais os sinais de alerta a que se deve estar atento?

A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia tem insistido muito na necessidade de as pessoas estarem atentas a determinados sinais que as devem levar de imediato ao médico. Anomalias como uma dor torácica persistente, alterações na deglutição, a existência de refluxo persistente - a que se costuma chamar azia - ou mesmo a regurgitação de alimentos. Todos estes são motivos para se realizar exames, como o endoscópico, sobretudo sabendo-se que a precocidade do diagnóstico pode fazer toda a diferença. Há lesões pré-malignas que, inclusivamente, são possíveis de retirar por via endoscópica, sem necessidade ainda de cirurgia.

Perante a existência de queixas, a postura do médico só pode ser proativa, fazendo o que é absolutamente necessário, ou seja, estudar convenientemente o seu doente, fazendo os exames indicados.

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