A tempo e a desmodo
Henrique Raposohenrique.raposo79@gmail.com
Mário Soares, KGB e CIA
Uma edição histórica
Sabem quem era “Mercuriy” na linguagem do KGB? Mário Soares. Não, Soares não era um amigo ou agente do KGB, como Octávio Pato ou Cunhal. “Mercuriy” era o nome de código da estratégia de aproximação a Soares (1972-1977). O próprio Cunhal estava a par desta cartada liderada pelo agente Koblikov, que certa vez até recebeu informações de Soares e uma carta endereçada a Brejnev. Mas as notas da arca de Mitrokhin são claras em relação ao fracasso da missão “Mercuriy” - “os objetivos delineados não foram alcançados”. Razões para o fracasso? Arrisco que a causa foi a presença do Soares moderado (que aparecia e aparece às terças, quintas e fim de semana). Contudo, por diversas vezes naqueles anos de caos e radicalismo, Soares partilhou retórica e objetivos com o KGB. Resta saber se existiu ou não uma aliança tácita e consciente entre o KGB e o Soares radical (que aparecia e aparece às segundas, quartas e sextas). Já agora, recorde-se que o PS esteve desde a fundação infiltrado pelo KGB. Eduardo Maia Cadete (1942-1999), o agente “Braun”, era um histórico de 1973.
Em 1977, quando era primeiro-ministro do I Governo constitucional, Soares constava na lista de contactos de um agente do KGB do posto de Lisboa (“Yaroslav”) e Mitrokhin registou o seguinte em Moscovo: “graças aos esforços nos bastidores por parte de Mário Soares, o posto conseguiu encerrar os semanários reacionários ‘Telex’ e ‘A Rua’, que publicavam regularmente matérias anti-soviéticas.” A nota garante ainda que foi graças a Soares que uma conferência contra a ameaça soviética foi adiada por longo período e transferida para 1978. O documento não é claro sobre um ponto: Soares estava objetivamente a ajudar ou a utilizar o KGB para os seus propósitos, ou existiu apenas uma coincidência involuntária de intentos?
Por último, a arca de Mitrokhin revela que Octávio Pato (“Patrick”) dispunha de material comprometedor sobre as ligações entre a CIA e Soares e André Gonçalves Pereira (ministro dos Negócios Estrangeiros entre 81 e 82). Este ponto é fundamental. Porque o problema não está na eventual ligação a serviços secretos. Um ator político, sobretudo em momentos de caos e transição, não suja a sua reputação se procurar apoio em espiões estrangeiros. A espionagem é um instrumento, não é a essência. A espionagem não suja, o que suja é a natureza ditatorial de certos regimes políticos. Por outras palavras, o problema de Cunhal é o compadrio com o KGB, a polícia secreta da maior ditadura do mundo de então. Ao invés, a relação entre Soares e a CIA não causa dano, porque a CIA estava e está ao serviço da maior democracia do mundo e do maior bloco de democracias da ordem internacional, a NATO – esse alvo privilegiado do KGB e da esmagadora maioria dos intelectuais portugueses da época e até de hoje.