O POEMA ENSINA A CAIR

LAMBER FERIDAS

A dor é o que a faz pegar no lápis e escrever. No fim lê sempre o poema em voz alta porque "tem de haver uma música" que é só dela

TEXTO RAQUEL MARINHO VÍDEO JOANA BELEZA GRAFISMO VÍDEO JOÃO ROBERTO

"Ninguém esquece um corpo que teve
nos braços um segundo - um nome sim.

Maria do Rosário Pedreira nasceu em 1959, estudou Línguas e Literaturas Modernas, deu aulas durante um período de cinco anos, mas cedo começou o trabalho nos livros - "nunca soube fazer outra coisa que não ler e escrever" - onde se mantém até hoje, como editora.

Leitora compulsiva desde pequena, cresceu numa casa com muitas estantes e livros onde pai e mãe tinham hábitos de leitura regulares e não impunham regras aos filhos, quatro, nas escolhas literárias: "os meus pais eram completamente liberais, portanto os livros estavam lá e íamos buscar o que quiséssemos." A exceção a este livre arbítrio era feita apenas no capítulo das notícias escritas, porque Maria do Rosário Pedreira e os irmãos eram "obrigados a ouvir artigos de jornal e outras coisas que estavam ali", lidas alto na sala, pelo pai.

Ouve dizer e diz poesia desde pequena, também porque estudou no João de Deus, uma escola que fazia questão de homenagear o seu mentor: "logo na instrução primária lembro-me de ouvir poesia e dizer poesia, que era uma coisa que se fazia na escola. Tínhamos saraus no fim do ano e tudo. Com nove anos fui dizer o "Ó Mar Salgado", do Fernando Pessoa."

Começou também cedo a escrever poemas e outros textos, "primeiro quadras para oferecer à família", mais tarde uma peça de teatro, "um cliché de uma princesa que se perde e que é resgatada e entregue ao rei." Na adolescência "escrevia para lamber feridas ", e admite que esse mecanismo não sofreu grandes alterações: "a dor é o que me faz pegar no lápis. A função primeira da minha poesia é terapêutica, eu escrevo para tirar coisas más de mim."

Inscreve-se então "numa tradição literária romântica" e nem sequer entende porque é que aqui e ali dizem que os seus livros são corajosos: "na base, acho que todos queremos ser amados e amar, e portanto não percebo porque é que não se pode falar de uma coisa que é comum a toda a gente. Acho normal falar destas coisas."

Admite-se, no entanto, "desfasada no tempo" da maioria dos poetas contemporâneos, "porque este é um tempo em que a poesia é muito mais cerebral. Para alguns poetas importa mais o contexto do que o sentimento, e para outros há um retorno à admiração dos clássicos, personagens gregas e romanas, mais do que ao próprio eu e aos dilemas desse eu." Simultaneamente, "não querendo generalizar", considera a poesia contemporânea dos mais jovens "muito presa ao quotidiano, ao supermercado, ao hamburger, ou à bebedeira de sábado à noite."

Explica que só produz quando tem "a dor latente" mas que "a dor dos outros também é um bocado nossa". Nesse sentido, o que tem escrito ultimamente utiliza a dor alheia decorrente da crise social, que encontra nas manchetes dos jornais ou na televisão: "estamos a falar dos efeitos da crise nas suas várias formas. As lojas que fecham, as esperas para operações, as faltas de tratamento médico por causa da poupança. Enfim, todas essas coisas exercem sobre mim uma espécie de irritação." Uma irritação que uma vez registada nos poemas faz com que se sinta "um pouco distante deles, como se fosse mais a pessoa e menos a poetisa" que os escreveu. Não sabe ainda se serão reunidos num livro, "porque é uma coisa um bocadinho datada que corre o risco de parecer panfletária" e isso representaria "uma mudança de voz" a meio da vida literária.

Escreve os poemas à mão e lê-os sempre alto: "tem de haver música, tem de soar bem, uma música que é a minha." Explica que ao ler alto encontra imensos defeitos para ir corrigindo, e que passa "permanentemente a limpo as várias versões", porque trabalha mal com coisas riscadas. Só depois de ter uma "versão aceitável" passa o poema para o computador e nessa altura tem "uma especial obsessão" com o aspeto gráfico.

Trabalha no meio editorial, "uma sorte", por ter "um perfil muito mau para outras coisas": "fiz uns testes de orientação escolar e profissional com 14 anos e disseram-me que tinha um gráfico terrível, porque tinha quase tudo a zeros, exceto atividades literárias e artísticas e atividades persuasivas, que podiam ir do advogado ao vendedor." Por o pai ser advogado, ainda pensou seguir advocacia, e também "gostaria de ter feito teatro", mas lida mal com o público, "sobretudo se conhecer alguém lá". Pergunto-lhe o que faz para resolver essa questão, uma vez que são várias as vezes que tem de ler para uma plateia: "tomo comprimidos, que o meu amigo pianista Júlio Resende chama lansiolíticos, por serem os comprimidos dos lançamentos, e escrevo o que vou dizer."

O trabalho no meio editorial obriga-a a leituras profissionais diárias de textos de pessoas que querem publicar e de autores recentes. Não vê com grande otimismo o que se vai fazendo na literatura atual: "é mau. Acho que é porque as pessoas que não são escritoras veem outras que não são escritoras publicar livros, e portanto também querem. Ou seja, estamos numa fase em que há mais escritores do que leitores." A mesma desolação acontece quando entra na maioria das livrarias porque, explica, "é cada vez mais difícil distinguir um livro mau de um médio, ou de um bom." Cita Pacheco Pereira para dizer que "é tudo papel pintado, os relevos e os dourados" ,para concluir que "é muito difícil a um não literato saber o que está a comprar, porque houve essa permissividade da indústria de pôr cá fora livros que noutro tempo não eram publicáveis."

Considera difícil a tarefa de "viciar o leitor numa literatura enganosa e trazê-lo para a literatura séria", mas gostava que isso acontecesse, porque os livros ditos mais complexos "são os livros que mudam as pessoas, as fazem pensar, lhes dão conhecimento, formação e armas para se rebelarem quando é preciso. São esses livros que as impedem de ficarem sonâmbulas, como estão."

Embora escreva desde sempre, admite que não tem essa necessidade, ao contrário do que acontece com a leitura. Procura, nos intervalos das obrigações profissionais, espaço para ler o que realmente quer. Sempre foi assim, à semelhança do que acontece com a mãe, e provavelmente sempre será: "a minha mãe tem 90 anos e ainda me pede livros todas as semanas e reclama quando os acha ligeiros."

A poesia serve para quê?

Para nada, que é o melhor elogio que se lhe pode fazer. (Mas lá que muda as vidas de quem a lê, lá isso muda.)

Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?

«I will arise and go now» ou «When you are old and grey and full of sleep». Desculpem se soa pretensioso usar versos noutra língua, mas Yeats é mesmo a minha paixão.

Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?

Talvez do Reino Unido, onde ainda há muita boa gente a rimar e a fazer música com palavras sem medo de não ser moderno.

Um bom poema é...

Sente-se, mas não se explica.

O que a comove?

Coisas que nada têm que ver com a poesia, acima de tudo a fragilidade e a solidão da velhice; os poemas deslumbram-me, podem deixar-me muda e até salvar-me (e, sim, se falarem da velhice, talvez me comovam).

Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?

Nenhum. Para quê?

Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?

"Devias ter escrito mais, mas preferiste ler."