MUNDO
Amor e morte: Alepo
MARIDO E MULHER Mãos dadas para enfrentar a desolação. É o amor possível numa cidade impossível FOTO GETTY
Esta imagem foi tirada a 4 de dezembro. Ainda havia guerra. Este texto é publicado a 14 de dezembro. Foi escrito que a guerra havia cessado. Mas não cessou. “Toda a gente vai ser morta.” Alepo, cidade trágica
TEXTO HELENA BENTO
Eram 23h04 de terça-feira (1h04 em Alepo) quando Majd Khalaf, dos White Helmets (força de socorros não-governamental que atua na Síria, formada por milhares de voluntários), enviou-nos um vídeo pelo Whatsapp intitulado “Right now inside Aleppo”. Várias mulheres e crianças são transportadas em carrinhas brancas que seguem em marcha lenta por ruas que desconhecemos. O autor do vídeo aponta depois o ecrã do telemóvel para si e, num tom muito agitado e nervoso, começa a falar em árabe. Não deve ter mais do que 25 anos, denuncia-o o ar juvenil e os cabelos fartos. Majd Khalad explica-nos, a partir de Istambul, que se trata de um dos voluntários dos White Helmets que ainda se encontram na zona este de Alepo e descreve o que está a acontecer: com o avanço do Exército sírio sobre os territórios ainda controlados pela oposição, é preciso tirar dali os feridos o mais rápido possível.
Pode acontecer que as tropas do regime não os ataquem nem aos restantes civis que hão de encontrar pelo caminho, mas também pode acontecer, e é nisso que eles, White Helmets, acreditam, que todas estas pessoas que ao fim de quatro meses de cerco ainda se encontram encurraladas tenham o mesmo destino que as 82, incluindo mulheres e crianças, que de acordo com Rupert Colville, porta-voz das Nações Unidas para os Direitos Humanas, foram executadas nos últimos dias nas suas próprias casas, em quatro bairros diferentes, pelas forças leais ao regime, revelando “um total colapso da humanidade”.
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À hora em que conversámos com Majd Khalah tudo estava relativamente calmo em Alepo. Os bombardeamentos tinham sido suspensos. O regime de Bashar al-Assad, que na terça-feira anunciara a reconquista da zona este, até então controlada pelos rebeldes da oposição, parecia estar a cumprir a sua promessa de cessar-fogo. “Ao longo da última hora fomos informados de que as atividades militares no leste de Alepo terminaram. Não há, por isso, qualquer dúvida sobre a cessação das hostilidades ou operações humanitárias. O governo da Síria recuperou o controlo da região, por isso chegou o momento de pôr em prática as iniciativas humanitárias”, afirmou Vitaly Churkin, embaixador da Rússia para as Nações Unidas, citado pela CNN.
Na mesma altura, foi anunciado um plano “mediado pela Turquia” para retirar as cerca de 50 mil pessoas, entre civis e combatentes, que ainda se encontram na região, e levá-las para oeste ou para a província vizinha de Idlib. O plano deveria ter entrado em vigor às 5h da madrugada desta quarta-feira, segunda informações de uma fonte do regime citada pelo “Guardian”, mas uma hora e meia depois ainda nada tinha acontecido. Os autocarros continuavam parados. Para agravar ainda mais a situação, esta quarta-feira recomeçaram os bombardeamentos, garantiram fontes oficiais dos combatentes da rebelião e ativistas, entre eles Salah al-Ashkar, do Aleppo Media Center (AMC), que em declarações à CNN disse que as áreas ainda controladas pelos rebeldes da oposição foram alvo de ataques aéreos do regime. “Há bombas a cair nos bairros cercados de Alepo. Há feridos nos hospitais por causa dos bombardeamentos.” A versão do regime e da sua aliada Rússia é, porém, outra: terão sido os rebeldes, e não o Exército sírio, a iniciar ataques, que foram imediatamente repelidos pelas forças do Governo sírio, que vão continuar as suas operações para eliminar a resistência no leste de Alepo.
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Tal como o rapaz de ar juvenil e cabelos fartos que filmou o vídeo que mostra várias mulheres e crianças dentro de carrinhas brancas que seguem em marcha lenta por ruas que desconhecemos, também Ismail Alabdullah pertence aos White Helmets e está na zona leste para dar apoio à população. Em conversa com o Expresso, Ismail acusa o regime de ter levado a cabo ataques esta quarta-feira de manhã, “depois de várias horas em que não se verificaram quaisquer bombardeamentos”, e diz que “toda a gente vai ser morta” quando as forças de Assad retomarem o controlo das pequenas áreas que ainda estão nas mãos dos rebeldes.
As condições em que vivem as pessoas na zona leste continuam a ser deploráveis. Alepo, que um dia foi considerada a capital comercial da Síria, é hoje uma cidade maltratada. Ao fim de anos de bombardeamentos e outro tipo de ataques (o conflito ali começou em 2012, quando a oposição se apoderou da zona leste), ninguém esperava outra coisa. Abo Alezz, médico que até há bem pouco tempo trabalhava num dos poucos hospitais da região (entretanto foi obrigado a deslocar-se para a zona rural da província de Alepo), diz que “as pessoas estão simplesmente à espera da morte”. “Não têm qualquer contacto com o exterior. A situação é aterrorizante. Estão sob a ameaça da morte, que pode chegar a qualquer instante.” As equipas médicas na zona leste estão reduzida a 280 elementos, entre médicos e enfermeiros, diz Abo Alezz.
FOTO GETTY
Os vídeos divulgados nos últimos dias nas redes sociais por residentes da zona este de Alepo mostram que as pessoas estão conscientes da situação em que se encontram e que esperam uma tragédia. “É muito provável que este seja o meu último vídeo. Mais de 50 mil civis que se revoltaram contra o ditador [Bashar] al-Assad enfrentam ameaças de execução e arriscam-se a vir a ser atingidos em bombardeamentos”, disse Lina Shamy, ativista local, num vídeo divulgado no Twitter.
To everyone who can hear me!#SaveAleppo#SaveHumanity pic.twitter.com/cbExEMKqEY
— Lina shamy (@Linashamy) 12 de dezembro de 2016
Salah Askar, também ativista, apelou à população para sair à rua em solidariedade para com a população de Alepo. “Por favor, dirijam-se às embaixadas e bloqueiem as passagens. Por favor, dirijam-se à sede das Nações Unidas e bloqueiem as passagens. Por favor, não os deixem dormir. Façam isso, façam isso, façam isso, façam isso agora. Não há tempo a perder. Por favor, por favor, não desistam de Alepo”.
Go to the embassies and block the way
— salah ashkar (@SalahAshkar) 12 de dezembro de 2016
Go to the UN headquarters and block the way
There is no minute to spare#standwithaleppo pic.twitter.com/9JQq7yQ9sm
Abdulkafi al-Hamdo, ativista e professor de Inglês, partilhou na terça-feira um vídeo no Periscope em que diz ter “perdido as esperanças na comunidade internacional”. “Não voltem a acreditar nas Nações Unidas. Não voltem a acreditar na comunidade internacional. Não julguem que não lhes agrada o que está a acontecer aqui, porque na verdade agrada-lhes que nós estejamos a ser mortos”, diz, acrescentando depois: “A Rússia não nos quer vivos. Quer-nos mortos. Com Assad é o mesmo. Ontem houve muitas celebrações na outra parte de Alepo. As pessoas estiveram a celebrar em cima dos nossos corpos”.
مباشر على #Periscope the last call from #Aleppo https://t.co/ifzUwupFK1
— @Mr.Alhamdo (@Mr_Alhamdo) 13 de dezembro de 2016
Neste ponto em concreto, Abdulkafi al-Hamdo referia-se aos vídeos e fotografias que circularam nos últimos dias nas redes sociais e órgãos de comunicação social mostrando grupos de pessoas em intensas celebrações devido à chegada do Exército sírio àquela região. Para uma população que foi tão massacrada pelo regime, não deixa de ser estranho tamanhas manifestações de alegria e simpatia. Majd Khalad começa por dizer que essas pessoas são apoiantes do presidente Bashar al-Assad, mas depois volta atrás e reformula: “É verdade que Assad não tem apoiantes naquela zona, mas as pessoas não têm agora outra escolha senão aceitar e dar as boas-vindas aos militares, depois de terem estado durante tanto tempo cercadas, sem acesso a comida e a cuidados de saúde”.
Se não se sabe com grandes certezas o que vai acontecer nas próximas horas, menos ainda se sabe sobre o destino de todas estas pessoas, mesmo que elas sejam retiradas da zona leste em segurança. O que irá o regime fazer com elas? Facilitar a sua instalação noutras províncias e cidades, garantindo-lhes acesso aos bens e cuidados mais básicos? Ou irá, pelo contrário, dar início a uma espécie de caça às bruxas alimentada por sentimentos de vingança e desejos de perseguição, tortura e morte, como o fez no passado? A Human Rights Watch apelou já às Nações Unidas para enviarem equipas para o terreno de modo a evitar futuros abusos, bem como documentar crimes que possam ter sido cometidos e visitar centros de detenção. Também Jean-Marc Ayrault, ministro dos Negócios Estrangeiros francês, pediu esta quarta-feira a presença de observadores das Nações Unidas em Alepo para supervisionarem a retirada de civis e combatentes rebeldes e evitar que estes últimos sejam “massacrados”.