Antes pelo contrário
Daniel Oliveiradanieloliveira.lx@gmail.com
Ou queres governar ou serás sempre governado
Qualquer governo decente saído das próximas eleições legislativas tem de se comprometer a travar o desmantelamento do Estado Social. Tem de reverter o aumento do desemprego e combater a precarização do trabalho. Tem de travar a redução de salários e das pensões. E tem de estancar o empobrecimento e a emigração. Só o pode fazer com um enorme realismo perante os constrangimentos europeus. Lutando para os mudar. E sabendo que essa luta, se for perdida, impede o cumprimento desta promessa e torna esse governo inútil.
Para isto, é preciso reestruturar a dívida em moldes que tenham em conta as condições políticas existentes em Portugal e na Europa e as necessidades financeiras do País. E é preciso rever as metas do Tratado Orçamental. Um tratado que constitui atentado à soberania democrática e ao parlamentarismo, que têm na definição do orçamento de Estado o seu núcleo duro. Mas, falando de um programa de emergência, trata-se de impedir que ele obrigue, para ser cumprido, à destruição do Estado Social. Ele ou as suas metas têm de ser renegociados. Mas, no limite, Portugal poderá ter de o incumprir. Quem promete proteger o Estado Social e combater o desemprego, pagar a dívida tal como ela está e cumprir as metas do Tratado Orçamental está a mentir às pessoas. Sendo certo que um governo que desista de defender o Estado Social e combater o desemprego não é melhor do que este. Nenhum programa de compromisso pode ignorar este triângulo de impossibilidades.
Este suposto programa mínimo só pode nascer de um prévio “programa máximo”. E mesmo que fosse mínimo não será cumprido sem uma enorme coragem política. E isso exige que um qualquer elemento novo perturbe o status quo político-partidário. Sabemos como acaba a novela habitual. Depois de muitas promessas de milagres impossíveis, em que chega boa vontade para travar a austeridade, o PS governa no consenso do centrão euro-obediente e, quanto muito, culpa estrangeiros pela nossa desgraça. E os partidos à sua esquerda continuam muitíssimo satisfeitos com a sua suposta superioridade moral por não terem participado na governação do País, esperando que um dia a revolta seja tal que milhões de votos lhe caiam no regaço. Achando ingenuamente que o desespero não se limitará a engordar um qualquer movimento populista que tenha umas frases simples e nenhum programa político e económico para oferecer.
Já o disse e repito: só a existência de uma força política à esquerda disponível para governar em coligação com outros pode desequilibrar a vida política portuguesa para onde ela precisa de ser desequilibrada. Não defendo uma força política que participe num governo. Defendo uma força política que participe na governação. Não é a mesma coisa. Não se trata apenas de fazer maiorias com o PS. Trata-se de construir maiorias para uma governação decente, com políticas decentes, em que o PS é, nas atuais circunstâncias, um elemento indispensável. Ou, sempre que o PS escolha o caminho oposto, ter a capacidade de penetrar no eleitorado socialista. O que só é possível se as pontes com esse eleitorado se mantiverem sempre abertas e a disponibilidade para governar for percecionada como real.
Como as coisas estão, o PS tem o seu flanco esquerdo seguro. Quem o critica não quer governar e as pessoas sabem disso. É acabar com este conforto de todos, muito mais do que a união ou divisão da esquerda, que me interessa. Não me interessa grande coisa uma “esquerda forte”, que não tenho, se ela for irrelevante na vida concreta das pessoas. Se ela se contenta em ter razão e em ser uma força de resistência a trabalhar para a memória e para a posteridade. Interessa-me ter uma esquerda que permita que haja um governo substancialmente diferente do atual.
A existência do Congresso Democrático das Alternativas, para a construção de programa de compromisso de toda a esquerda (PS incluído); o apelo das milhares de pessoas que subscreveram o Manifesto 3D para a criação de um polo político forte capaz de se apresentar aos eleitores com a vontade de construir um compromisso para uma governação decente; os resultados simpáticos do Livre nas últimas eleições europeias - que, como todas as diferenças de opinião que eu possa ter, se situa no campo político de contestação da lógica da austeridade e do combate ao sectarismo -; e a decisão da corrente Fórum Manifesto, liderada por Ana Drago, de se desvincular do BE e de iniciar um processo que leve à criação, com outros, de um novo movimento político correspondem a um processo confuso e lento, mas indispensável, para o nascimento de um sujeito político. Um sujeito político que está condenado a apresentar-se, seja lá de que forma for, às próximas eleições legislativas. E que tem de incluir isto e ainda mais do que isto. Este é o único caminho que poderá vencer a alternância da desilusão ou o pântano do bloco central.
Quem não perceber que estamos a viver um momento fundador, onde se define, em Portugal e na Europa, o que vai ser destruído do nosso passado e o que vai ser construído para o nosso futuro, pode continuar a fazer política como antes. Sabendo que o que se perder agora dificilmente pode vir a ser recuperado. Só quem percebe que a urgência deste momento histórico obriga a vencer incómodos e tabus e a assumir o risco do erro pode ter uma agenda realmente transformadora. Quem quer permanecer puro e virgem, longe do poder e no conforto da mera resistência, não transforma nada. Nem sequer se transforma a si mesmo.
Mas não nos enganemos. O que é preciso não é um comparsa que apare os golpes do PS e lhe cubra os erros. O que é preciso é quem seja duro de roer e combativo nos seus princípios. Mas que, no fim do dia, saiba negociar e chegar a compromissos. A luta serve de muito pouco para quem não saiba negociar os seus frutos. O compromisso é só uma cedência para quem não lutou com firmeza por eles. Conseguir uma esquerda que luta e negoceia em nome de uma governação decente é o que se exige agora. Para isso, tem de saber muito bem qual é o seu núcleo de valores. Só pode discutir tudo quem sabe o que é indiscutível. Para mim, o que é indiscutível, nas circunstâncias políticas, económicas e europeias que vivemos hoje, é a necessidade imperiosa de reverter o aumento do desemprego sem ser por via da precarização e das perdas salariais (até porque não resulta) e impedir a destruição do núcleo duro do Estado Social - Serviço Nacional de Saúde, Escola Pública, sistema de reformas e prestações sociais. Se para conseguir isto se perdessem muitas carreiras brilhantes de puríssimos resistentes, tinha mesmo assim valido a pena.
De fora deste texto deixo a análise do que levou a mais saídas do Bloco de Esquerda. Essa reflexão ja fiz há algum tempo, quando eu próprio abandonei o partido. Decida o BE rever o rumo ou mantê-lo, não estou interessado em guerras inúteis e ressentimentos que não constroem nada. As forças são poucas e, por mim, estão reservadas à criação das condições para uma governação decente deste País.
Declaração de interesses: estive, estou e estarei envolvido em alguns dos processos sobre os quais aqui escrevo. Este texto não deve ser lido como análise ou opinião exterior ao tema, mas como um artigo escrito por alguém diretamente interessado nele.