Entrevista

A. B. Yehoshua

“A juventude está a viver a sua vida. Não sabe o que é não ter um Estado”

Estava lá quando David Ben Gurion declarou a independência. E estava lá na guerra que se seguiu. Em todas as que se seguiram. Lutou em algumas — também na de 1967. Defendeu sempre a criação de um Estado palestiniano ao lado do judeu, mas hoje está a repensar essa ideia, que considera uma quase “impossiblidade”. A. B. Yehoshua é um dos maiores romancistas de Israel. O que quer que Israel hoje seja

Texto Luciana Leiderfarb enviada a Israel, Ilustração Ana Simões

A.B. Yehoshua faz parte da tríade formada também por David Grossman e Amos Oz. Falar em literatura israelita equivale a falar de todos deles. Mas não só: os três são grandes analistas do seu país e críticos em relação ao rumo que tem vindo a tomar. O segundo perdeu um filho em 2006, na guerra contra o Líbano. O terceiro viveu 30 anos num kibbutz. A. B. Yehoshua é o único cuja família já residia na Palestina há várias gerações, desde finais do século XIX. E que não tem origens na Europa do leste, onde surgiu o sionismo, mas na Grécia e em Marrocos. Aos 81 anos, e depois de meio século a defender a solução dos dois Estados — judeu e palestiniano — na terra de Israel, A.B. Yehoshua já não acredita que tal seja possível. Mas defende uma saída que dê cidadania plena aos palestinianos da Cisjordânia, com vista a “abolir o apartheid”. Num presente cheio de “ódio racial”, não há futuro que não passe por aqui.

Conte-me que tipo de judeu é.

Sou a quinta geração aqui. A família do lado do meu pai veio de Salónica, na Grécia, no século XIX. A da minha mãe veio de Marrocos em 1932. Portanto, sou judeu oriental, um ‘mizrahi’, parte dessa diáspora pelos dois lados. Antes do Holocausto, os judeus asquenazes eram 93% de todos os judeus do mundo e os mizrahim eram 7%. Mas 6 milhões de asquenazes foram exterminados, e nem todos os que sobreviveram vieram para Israel. Com a chegada de muitos judeus oriundos dos países árabes, hoje somos 50-50.

Os judeus não queriam vir para aqui. Uma diáspora com mais de 2000 anos espalhara-os pelo mundo, como se fosse uma cadeia de hotéis

O que é Israel para si 70 anos depois da criação do Estado?

O Estado de Israel é um milagre. Porque os judeus não queriam vir para aqui. Uma diáspora com mais de 2000 anos espalhara-os pelo mundo, como se fosse uma cadeia de hotéis. Mas a identidade judaica compõe-se de nacionalidade e religião, e isto é único. E esta dupla condição permitiu-lhes estar em todo o mundo preservando a identidade. Há também muita assimilação. O número de judeus na altura da destruição do Templo — no ano 70 a.C. — era de 3 milhões, e no início do século XVIII era de só um milhão. Portanto, decresceu. E está sempre a decrescer.

Fala de um milagre, é uma palavra muito usada por aqui.

É preciso perceber que o movimento sionista começou no fim do século XIX, e eles vieram sobretudo porque o antissemitismo estava a tornar-se violento. Já não era um antissemitismo cristão, como o da Inquisição, mas um antissemitismo nacionalista secular, e isso trouxe a ideia de que se não podemos mudar um antissemita, pode-se mudar o judeu. E pode-se deixar de olhar para o mundo como uma cadeia de hotéis e voltar para o antigo território, e normalizar a nossa vida, como outros povos fizeram. Ter uma língua, uma terra.

Nota que só quando o antissemitismo começou a ser violento os judeus começaram a emigrar. Houve um atraso nesse retorno?

Tudo foi feito demasiado tarde. Se tivéssemos conseguido criar um Estado antes do Holocausto, poderíamos ter salvo milhões de judeus. Mas eles não vieram, achavam que a Europa não os ia expulsar com aquela violência, não os ia assassinar. Os sionistas estavam sozinhos e eram um movimento pequeno, e pagámos caro esse adiamento. Pagámos um preço terrível. Tem de perceber, isto é crucial: antes de tudo, a culpa está em cima de nós, judeus. Eles não vieram. É por isso que repito sempre que a minha família veio no século XIX. No último momento depois do Holocausto estabelecemos um Estado. Mas essa culpa, essa parte da culpa, ficou connosco.

Não havia alternativa. Sabíamos que se os árabes vencessem teria havido outro Holocausto. Teriam acabado de vez connosco. Então, a decisão de criar um Estado foi muito importante, corajosa e arriscada. Poderíamos tê-lo perdido. Depois, o Estado começou e nós estávamos orgulhosos de o ter. Tínhamos uma bandeira, um território, uma língua para pensar e falar

Lembra-se do dia em que a Independência foi declarada?

Nasci em 1936. Em 1947, a ONU decidiu a partição da Palestina e em 1948 o Estado foi criado. Eu tinha 12 anos. Lembro-me que estava em Jerusalém, numa cidade cercada. A declaração foi feita por Ben Gurion a 14 de maio em Telavive, e de imediato a estrada para Jerusalém foi cortada e seis países árabes vieram destruir-nos. Quando o exército jordano entrou, fomos viver para um abrigo. Houve uma luta muito intensa à volta de Jerusalém, em especial para conseguir reabrir a estrada, que era vital para receber mantimentos e água — eles tinham bombardeado os depósitos.

Tem memórias desses tempos?

Foram tempos extremamente difíceis, do ponto de vista das famílias, do medo pelos filhos, da falta de comida. Não havia nada. De repente estávamos a ser de ameaçados de morte outra vez. Mas lutámos finalmente pelas nossas vidas, porque atrás de nós estava o mar e não tínhamos para onde fugir. Não havia alternativa. Sabíamos que se os árabes vencessem teria havido outro Holocausto. Teriam acabado de vez connosco. Então, a decisão de criar um Estado foi muito importante, corajosa e arriscada. Poderíamos tê-lo perdido. Depois, o Estado começou e nós estávamos orgulhosos de o ter. Tínhamos uma bandeira, um território, uma língua para pensar e falar. E amamos o Estado mesmo estando o tempo todo em guerra. Eu também estive no exército em 1952, nos paraquedistas, estive na campanha do Sinai, na guerra dos Seis Dias. Os judeus vieram aos poucos, em especial os refugiados do Holocausto e os judeus dos países árabes.

Se examinamos 70 anos, começou-se do quase zero, do perigo total, da ameaça sobre Israel de a cada momento poder ser eliminado. Mesmo agora, o Irão está a falar não de uma guerra, mas da destruição total de Israel — e não temos uma fronteira, nunca tirámos um centímetro do seu território. Isto é muito triste

Pensa que essa parte da História está resolvida, que os judeus normalizaram essa situação?

Se examinamos 70 anos, começou-se do quase zero, do perigo total, da ameaça sobre Israel de a cada momento poder ser eliminado. Mesmo agora, o Irão está a falar não de uma guerra, mas da destruição total de Israel — e não temos uma fronteira, nunca tirámos um centímetro do seu território. Isto é muito triste. No entanto, temos a paz com o Egito e a Jordânia, resolvemos os problemas com estes países. O problema são os palestinianos.

Que, como muitas vezes escreveu, é ‘o’ problema, não se compara com os outros.

Primeiro que tudo, nós somos os culpados. Somos culpados. Porque após a Guerra dos Seis Dias começamos a construir colonatos dentro do território palestiniano. E este já era apenas 20% do território original. Tiramos-lhes 78% e nos 22% pusemos colonatos. Os palestinianos estão sob ocupação militar — na Cisjordânia, não em Gaza, que é hoje independente. A questão é como podemos chegar a ter dois Estados, tal como foi decidido em 1947 pela ONU.

E como se chega a isso?

Os colonatos tornam esse projeto muito difícil e o mundo não ajudou a pará-lo. O mundo deveria ter obrigado Israel a parar imediatamente. Podia ter pressionado o país, das mais diversas formas. Não digo que os palestinianos sejam fáceis. Claro que exigem o retorno, mas mesmo assim, os colonatos são o obstáculo principal à paz. O retorno podia ser resolvido com um compromisso, embora eles queiram voltar ‘para casa’ e não ‘para a terra’. E a casa já não existe. É um sonho utópico, e isso vê-se em Gaza: eles querem voltar para casa, e onde é a casa? A 10 km dali. Isso é estupidez e teimosia.

O problema é mesmo a Cisjordânia. E tem a ver não com os erros mas com a maldade de Israel (...) os colonatos tornam impossível tirar de lá 500 mil judeus. Temos de dar aos palestinianos da Cisjordânia a cidadania israelita, para abolir o apartheid.

Mas Gaza está cercada. Israel retirou-se do território, mas não lhe facilita a vida.

Gaza tem passagem para o Egito. E se parassem de lançar rockets, de fazer a guerra, podiam construir alguma coisa. Mas não reconhecem o direito de Israel a existir e por isso são considerados uma ameaça. Além do mais, é utópico eles pensarem que ao atirarem mísseis vão derrotar Israel. E no entretanto a população de Gaza não tem nada, vive na pobreza. Os palestinianos de Gaza estão a pôr-se a si próprios na pobreza, na miséria.

E a Cisjordânia?

O problema é mesmo a Cisjordânia. E tem a ver não com os erros mas com a maldade de Israel. Eu entendo que demoraram décadas a reconhecer o Estado, mas depois fizeram-se avanços: veio o Arafat, houve o acordo de Oslo, o de Genebra, houve negociações o tempo todo. E claro que eles têm exigências que não podemos aceitar. Mas os colonatos tornam impossível tirar de lá 500 mil judeus. E estes factos impedem a solução dos dois Estados. Fui um partidário dessa ideia durante 50 anos, agora não tenho tanta certeza. Hoje defendo que temos de dar-lhes a cidadania. Temos de dar aos palestinianos da Cisjordânia a cidadania israelita, para abolir o apartheid.

Hoje defende a ideia de Estado único?

Nunca pensei que fosse algum dia dizer que sou a favor da solução de um só Estado. Os palestinianos querem igualdade. Isto é importante, não se pode dividir Jerusalém. Há 2 milhões de palestinianos dentro de Israel que têm cidadania. Claro que há problemas, mas ainda assim estamos a trabalhar juntos. Os judeus já não estão a vir para cá na quantidade de outros tempos, então poderíamos ter uma espécie de Estado binacional. Escrevi sobre isto há semanas, porque este tema ocupa muito do meu pensamento.

Estamos a tornar-nos muito duros, cheios de ódio racial. Sentimo-nos culpados e, para compensar isso, estamos cada vez mais agressivos. A esquerda repete ‘dois Estados’ o tempo todo, mas já não há mais hipóteses de o concretizar

É possível falar do futuro de Israel sem resolver esta questão?

Não, mas as pessoas estão deprimidas, não querem falar. O tema está a tornar-se obsoleto, e nós estamos a tornar-nos muito duros, cheios de ódio racial. Sentimo-nos culpados e, para compensar isso, estamos cada vez mais agressivos. A esquerda repete ‘dois Estados’ o tempo todo, mas já não há mais hipóteses de o concretizar. A situação está congelada. Por outro lado, os palestinianos também estão divididos. Há entre eles uma ala muito agressiva e problemática.

E como vê a juventude do país?

A juventude está a viver a sua vida. Não sabe o que é não ter um Estado. Por exemplo, tenho três filhos, dois rapazes e uma rapariga, e sete netos, e com nenhum eles não posso falar de política ou da questão palestiniana. Porque estão cansados, ouvem falar disto desde que nasceram, querem concentrar-se na vida diária, nos seus trabalhos. O país está num bom momento do ponto de vista económico, o desemprego é muito baixo. Isto dá ao Governo a oportunidade de dizer: “Vejam, estamos no bom caminho, há empregos.”

Hoje os árabes são muito fracos, e nós sentimo-nos culpados. Muito do desprezo pelos árabes hoje em Israel tem a ver com essa culpa, com a transferência do sentimento de culpa para um “eles merecem”

Qual a sua leitura sobre a ascensão da direita? As pessoas votaram Benjamin Netanyahu.

Há pessoas que votaram nele e agora têm vergonha de o assumir. Mas ele só teve 25% dos votos. O resto dos votos são dos outros partidos que coligaram com ele. Israel está a virar à direita, como aliás o resto do mundo! Só que aqui essa viragem tem consequências talvez mais dramáticas porque congela e endurece a a questão da defesa dos direitos humanos. Não tem a ver apenas com política, mas com a forma como as pessoas se tornaram odiosas e racistas. Sinto-me muito mal com isso. O meu pai era um orientalista, falava árabe, tínhamos amigos árabes. Mas nunca vi pessoas a falarem de um forma tão terrível sobre eles.

Como explica esse ódio?

Hoje os árabes são muito fracos, e nós sentimo-nos culpados. E trocamos a culpa pelo ódio. Chegámos à paz com o Egito e com a Jordânia, a Síria e o Iraque estão acabados. Os palestinianos são muito fracos e estão divididos entre eles. Para mim, muito do desprezo pelos árabes hoje em Israel tem a ver com essa culpa, com a transferência do sentimento de culpa para um “eles merecem”. Mas sou suspeito, fui casado com uma psicanalista. Morreu o ano passado.

Várias vezes disse que está numa boa posição para falar da relação entre árabes e judeus justamente por vir de uma família oriunda dos países árabes.

Sinto-os como primos e descrevo isso nos meus romances. Não olho para eles de forma idealista, como os orientalistas, vejo-os com os seus problemas. Mas ao mesmo tempo sinto que temos de viver com eles para a eternidade. Não são russos, não são alemães, não se vão embora, não são estrangeiros! Vamos viver sempre com eles, e por isso temos de ser muito cuidadosos na relação que temos. Porque esta relação vai durar para sempre. Eles vivem à nossa volta, e não são pessoas que possam ou devam ir embora como a direita quer, não.

Nos artigos que tenho escrito, explico qual é a solução. Como dividir o país em cantões, em circunscrições. Uma forma de vivermos juntos sem provocar aquilo que as pessoas temem: que o país mude e deixe de ser um Estado judeu

Continuo sem perceber por que votam as pessoas na direita.

As pessoas votam na direita porque Netanyahu as assusta. Diz-lhes: nós retiramos de Gaza e em troca recebemos mísseis. E se retirarmos da Cisjordânia vai acontecer o mesmo. Posso até perceber o que ele diz, e acho que temos de colocar muitas condições ao Estado palestiniano. Mas não se pode colocar lá colonatos. Temos de dar-lhes alguma possibilidade de independência. Nos artigos que tenho escrito, explico qual é a solução. Como dividir o país em cantões, em circunscrições. Uma forma de vivermos juntos sem provocar aquilo que as pessoas temem: que o país mude e deixe de ser um Estado judeu.

Estava lá aquando da criação do Estado. Onde vivia exatamente?

A minha casa era no centro de Jerusalém, num apartamento alugado na King George. No triângulo desta rua com a de Jaffa e a Ben Yehuda. Lembro-me que eram as 12h do meio-dia quando Ben Gurion fez a declaração. E que depressa vieram os bombardeamentos. Mas a grande euforia foi com a decisão da ONU, a 29 de novembro de 147. Não sabíamos o que iria acontecer, pois era preciso ter 2/3 dos votos. O que é importante é que isto foi no meio da Guerra Fria, e os dois blocos, americano e soviético, juntaram-se para nos dar um Estado. Porque sentiram que após a II Guerra Mundial tinham de resolver o problema judeu — que se essa situação não se normalizasse isso seria perigoso até para eles.

A pergunta é: normalizou-se?

De imediato começou a hostilidade e a violência. Depois da decisão da ONU caíram bombas na nossa rua, casas inteiras ruíram, o meu pai ficou ferido. Por isso, em maio de 1948 nós já estávamos em guerra há muitos meses. E continuamos em guerra desde então e mesmo assim temos um país. Não posso responder à sua pergunta de outra forma.