ARQUIVO EXPRESSO
“Antes pobrezinho em Lisboa do que rico em Estocolmo”
Foi ator, encenador, realizador, argumentista, professor de atores e candidato à Câmara de Serpa. Alentejano, trabalhador e com a cabeça sempre cheia de ideias, desfiou histórias de uma vida cheia que hoje terminou. Um almoço-entrevista com Clara Ferreira Alves publicado na Revista em 1 de março de 2014
TEXTO CLARA FERREIRA ALVES FOTOS ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
Nicolau Breyner é uma daquelas personagens da vida real que parece que conhecemos sem conhecer. E com quem simpatizamos sem querer. Em parte, porque o conhecemos da televisão, onde se estreou jovem e onde tem sido uma presença constante em telenovelas, séries, filmes ou programas de comédia. É ator, encenador, realizador, argumentista, professor de atores, e tem a cabeça cheia de ideias. Vai abrir uma escola de atores, a NBA. Nicolau Breyner Academia. Foi candidato político à Câmara de Serpa, perdeu, diz que não repetirá a proeza. Não é candidato às europeias, ao contrário do que foi anunciado. É amigo do presidente da Câmara que o venceu, um comunista. A delicadeza de toque, que faz do "Nico" um homem encantador que pode chegar atrasado ou desaparecer sem que nos zanguemos com ele, tem como base uma educação à antiga portuguesa e uma capacidade de apreciar a vida. O "Senhor Feliz" ou o "Senhor Contente" (programa que fez com o estreante Herman José, na RTP) é um alentejano que trabalha muito porque "a família é grande". A jovialidade é desmentida pelos papéis dramáticos, sobretudo no cinema, que fazem dele um soberbo ator. A casa da Lapa está cheia de "miúdos", vozes, cães (o jipe, o sr. Pacheco e a sra. D. Maria José), retratos, fotografias, recordações. É um homem de família, casado cinco vezes. Na chaminé está uma fotografia dele, imaturo, com o maduro poeta Vinicius de Moraes. Ele diz que foi "uma amizade à primeira vista, que é como o amor à primeira vista". Tinham tudo para "dar certo", e a mulher de Vinicius dizia que eles eram "bichas". É padrinho de uma filha de Vinicius, Maria. Tal como o grande brasileiro, Nicolau Breyner tem o dom de tornar coisas complexas em coisas simples, operação mais difícil do que parece. Almoçámos muita comida alentejana com vinho alentejano, num restaurante alentejano, ao Calvário, um solar, onde ele é recebido como um rei. Muito queijo e pão alentejano a abrir e nenhum doce a fechar. Ele queria cação, não havia. Ficou prometido.
Disse-me, a propósito das telenovelas e das exigências das gravações, que não tem vida própria. Esta casa está cheia de vida própria. Família, retratos, cães, uma casa habitada por gente. Para um ator, eu diria que tem muita vida própria.
Tenho, tenho. Isso era a telenovela. Tenho uma vida que soube construir e defendo-a muito, a família é muito importante para mim. Da parte da minha mãe somos alentejanos há séculos, da parte do meu pai não. Sou um mestiço. O meu pai apaixonou-se pelo Alentejo. Era professor de História e Filosofia e foi abrir um grande colégio no Baixo Alentejo. Ainda eu não era nascido. Foi quando conheceu a minha mãe. Sempre fomos muito de família, embora a família não fosse grande. Tive só uma irmã, que morreu quando era muito pequenina, e só tenho um primo direito vivo. Mas o meu pai, a minha mãe, a minha avó e o meu avô vivemos sempre juntos. Eu sou a segunda geração que não é agricultora. O meu avô, pai da minha mãe, tinha duas herdades. Os Melos depois casaram com uma Breyner, estão em Serpa há 400 anos.
Serpa devia ser a aldeia mais bonita de Portugal.
Agora é uma cidade, a maior besteira do mundo. Cidade porquê? Não meti aí prego nem estopa. Serpa é grande e está muito bonita e bem arranjada. A Câmara é e sempre foi do PC, agora é do meu amigo João Rocha, que foi meu adversário nas eleições. Tornámo-nos amigos íntimos. De tal modo que nas últimas eleições ele concorreu a Beja e lá estava eu a apoiá-lo. Sem qualquer prurido, vergonha ou remorso. Ele foi notável em Serpa e vai fazer uma grande obra em Beja.
E porque é que se candidatou contra ele?
Achei que tinha um projeto válido para Serpa. A campanha deu-me imenso prazer e foi importante para conhecer o concelho e as pessoas. Perdi por margem pequena, mas Serpa não ficou a perder. O que eu queria fazer em Serpa foi feito por ele. Pus um ponto final nisso.
Não voltaria a ser candidato?
Não! Tenho de ganhar dinheiro, tenho uma família grande. Nas câmaras, sendo uma pessoa honesta, não se ganha dinheiro.
O Alentejo é uma das raras zonas em Portugal e na Europa que resistiu à predação.
Embora tenha terror de que um dia sucumba e seja vendido a retalho como o Algarve. O estio protege-o.
É um santuário. O Alentejo é maior e mais complicado, e os estios são ferozes. Eu adoro calor, não me incomoda. Este tempo de chuva e frio é uma depressão. Antes pobrezinho em Lisboa do que rico em Estocolmo. No Alentejo, a desertificação, sendo péssima, defendeu o Alentejo. Foi o que o manteve perto da sua pureza. O homem é inimigo da terra. É uma praga, estraga tudo aquilo em que mexe. Eu sou muito português e gosto de ser português, acho Lisboa uma cidade fascinante, e sou provinciano. Gosto de cidades pequenas, de bairros... Vivo neste há 30 anos, mudando de casa. Gosto de pessoas que vimos toda a vida e nos falam na rua. Ninguém deixa de se falar na rua, seria uma má-criação. É humano. Não me tirem as coisas de que gosto.
Uma vez disse a um alentejano que, se calhar, tínhamos de encher o Alentejo de turistas chineses. Talvez não fosse boa ideia.
O Alentejo foi um dos últimos sítios a ter lojas chinesas, mas já tem, e Serpa também já tem. Mas eles aprendem a falar português com sotaque alentejano. É divertidíssimo.
Mais três gerações e são alentejanos, passa-lhes o bicho carpinteiro. Vão dormir a sesta...
No filme que fiz com o Jeremy Irons, "Night Train", ele dizia-me: "Vocês dizem tanto mal de Portugal, mas isto é tão bom, pá! É bonito, a comida é ótima, as mulheres são bonitas, as pessoas são boas... É tudo bom, não o estraguem."
O estrago sério começou com o hipermercado à porta das cidades.
É aterrador, o hipermercado e o centro comercial. Odioso. Entrei duas vezes no Colombo. E vou às Amoreiras porque é perto e entro sempre no mesmo sítio e saio depois de fazer o que tenho a fazer. Sou como os burros
Acredita que a crise trará o famoso regresso à terra? Os alentejanos fugiram da terra.
As pessoas estão a regressar à terra, eu vejo isso, e há uma explicação. Neste momento, a agricultura começa a ser um negócio. Há polos de agricultura. Eu tenho terras, mas não cultivo. Com grande pena minha. Como dizia o meu avô, a herdade tinha o tamanho exato para perder dinheiro. A seguir ao 25 de abril, quando começámos a destruir o latifúndio, não percebemos que há um certo tipo de agricultura que só dá em latifúndio. Eu tenho alguns cavalos e cães, mais nada. Tinha porcos e também já acabei com isso, só serve para gastar dinheiro. O sítio é lindíssimo, a serra de Serpa, faz parte do vale do Guadiana, mas é uma terra árida, dura, terra de xisto. É um sítio para estar e perder dinheiro. Até os cães são caros, a ração é cara... Tenho um Rafeiro Alentejano, um cão fabuloso, que é o mesmo que um Serra da Estrela. Na transumância, eles vinham lá de cima com os cães de guarda até ao Alentejo, e quando passava a neve iam para cima e os cães iam ficando. A raça é a mesma. Tenho tudo, Rafeiro Alentejano, Mastins de Bordéus, um Grand Danois... e dois Buldogues Franceses, o "Sr. Pacheco" e a "Sra. D. Maria José", que só dá pelo nome de "Senhora Dona". "Maria José" não dá. Tenho uma fotografia do Grand Danois com o "Sr. Pacheco" dentro da boca. Dão-se todos muito bem. O Grand Danois, o "Jipe" - tem este nome porque é um monstro de 78 quilos -, passou muito tempo no Alentejo e tornou-se um predador, de vez em quando matava umas cabras e comia-as.
E o porco preto? Como é que se perde dinheiro com o porco preto?
Porque eu não sei ganhar dinheiro com nada. Na minha profissão, ganho porque me pagam um ordenado. O negócio comigo não funciona.
Isso é conversa de homem da terra, mas você é um ator, encenador, do mundo das telenovelas, das revistas do coração, dos dramalhões da hora do jantar... Ora parece que desliza por este mundo sem se deixar tocar. Não o leva a sério. Não se porta como vedeta da televisão e não dá entrevistas a dizer que encontrou ou espera encontrar o amor da sua vida.
Que vergonha! O que diria a minha mãe? Não me levo a sério como vedeta, levo-me a sério como ator. E sou muito mais da terra. Até que enfim que alguém me percebe. Mas tenho muito respeito pelo ator, e sou um ator. Acabo de criar uma escola de atores de televisão, a NBA, que não é a do basquetebol mas a Nicolau Breyner Academia. Está no 1º andar do Palácio Pancas Palha, onde é a escola de dança da Olga Roriz. Já tinha sido professor várias vezes, mas tenho ideias próprias quanto a um ator. Vou ensinar representação, com cursos de dobragem, cursos para crianças, módulos, etc. No próximo ano letivo começamos um curso de três anos, com teóricas, também com história do cinema, do teatro, voz, tudo... Eu fui aluno do Conservatório, tenho muita honra nisso, mas o Conservatório fechou-se sobre o teatro e ostracizou o cinema e a televisão.
Não há um estilo de representar na telenovela que contaminou atores de teatro?
Não posso usar a palavra contaminar. Eu costumava dizer aos meus alunos da ACT: nós vamos ensiná-los a fazer coisas, mas o material trazem de casa, foi a mãezinha e o paizinho que fizeram, aqui não se dá talento a quem não tem.
Muitos miúdos das telenovelas não têm ponta de talento. Nem tarimba. E são famosos.
Sim, mas também há miúdos com enorme talento em Portugal. Pouca vezes apareceu uma geração com tanto talento. Ser bonito não chega. Mas quem sou eu para dizer mal da novela quando fui eu que as comecei...
"Vila Faia" tinha preocupações de qualidade, não era tão fútil como o que se vê hoje.
É verdade. E a que veio a seguir, "Cinzas", era uma grande novela. A nossa RTP parou a seguir e esteve cinco anos sem fazer novelas. O maior disparate. "Vila Faia" é de 82, 83, quando estávamos a ser invadidos pelas telenovelas brasileiras. Eu estava a fazer o "Eu Show Nico", acho. A primeira telenovela portuguesa não foi a "Vila Faia", mas uma coisa chamada "Moita Carrasco", em que falávamos todos brasileiro, tínhamos um fado cantado em brasileiro e era tudo o maior disparate! Eu era tio de mim próprio, prima de uma prima que era mulher e homem ao mesmo tempo, era hilariante. Tudo com "n" atores, o Nicholson, a Mafalda Drummond, acho que o Rui de Carvalho... E depois fizemos uma grande série, a "Gente Fina". Mas foi no "Moita Carrasco" que experimentámos os processos de fazer novela. O Nuno Teixeira era o realizador, e o Thilo Krassman era produtor e autor. O Thilo deixou-me uma saudade tremenda. Experimentámos tudo. Dali nasceu a "Vila Faia". Um dia mandámos a bobine da Edipim para a RTP, e como houve um engarrafamento na estrada de Sintra a novela começou atrasada. Era assim. Quando acabámos o primeiro episódio - jantávamos na Edipim - fez-se um silêncio total. Fizemos mesmo um episódio! Faltavam 99. Não tínhamos o segundo feito. Hoje temos 10 ou 15 de antecipação.
Quem escrevia?
O Chico Nicholson, primeiro a Odette de Saint-Maurice e depois ele. O Chico foi o grande mentor. E sabe qual foi a primeira coisa que surgiu na novela portuguesa? A música! Uma vez estávamos em casa do Thilo, e ele começou a tocar umas coisas no piano, e eu disse: olha, uma boa música para uma novela!
Isso não tinha mais graça do que uma atrás da outra? É um bocado como fazer chouriços.
Hoje é uma máquina. Eu achava mais graça, confesso. São tempos irrepetíveis, começar do zero. E foi um grande êxito, apesar dos vaticínios dos velhos do Restelo.
E nunca mais parou. Faz cinema, teatro, mas a novela é o seu território.
Teatro faço menos, o último que fiz foi "Esta Noite Choveu Prata", um monólogo de três papéis. Vi a peça a primeira vez no Odeon, feita com o Villaret. Tinha 10 anos e fiquei fascinado, disse logo que um dia havia de a fazer, e fi-la aos 70 anos. Vi-a com os meus pais, sempre que vínhamos a Lisboa íamos ao teatro. A peça é um trabalho de solidão, para um ator velho.
O que lhe dá mais gosto fazer como ator? Comédia? Papéis dramáticos, onde foi extraordinário?
Tudo me dá prazer, mesmo na telenovela. Adoro fazer cinema, fazer e realizar. As comédias fazem dinheiro em Portugal. Eu fiz agora uma, com os miúdos que faziam o "TV Rural", "Curral de Moinas", e tivemos 340 mil espectadores.
Eu vi o trailer e fiquei aterrada. Aquele humor fácil e grosso não está um bocado passado?
Não está, não. Às vezes fica-se longe do que quer o grande público.
Você faz aquilo para ganhar dinheiro. Não preferia trabalhar com outro cineasta português?
Claro que sim, mas dá-me prazer fazer. Isso depende do cineasta, há gente com a qual não tenho pachorra para trabalhar.
O Manoel de Oliveira...
Nunca trabalhei com ele, não sei. Tenho o maior orgulho de ter feito este filme, "Sete Pecados Rurais". Não se pediu dinheiro a ninguém, nem ao ICA. E temos um ICA que privilegia meia dúzia de realizadores. Não podemos dizer que há 300 e tal mil estúpidos que vão ver aquilo e nós somos todos muito inteligentes.
Há alguma coisa que gostaria de fazer em cinema?
Montes de coisas. Tenho dois escritos e mais dois na cabeça. A cabeça fervilha. Nenhum é comédia. Quando estou na vida, ando sempre a brincar e a rir, mas quando escrevo é sempre um drama. Um deles tem a ver com a solidão, com os velhos, e não sei se conseguirei montá-lo.
É sobre o Alentejo?
Não, o Alentejo nunca teve um filme, teve uns ameaços. O Alentejo é um filme.
É ator, produtor, argumentista, realizador. E professor. One man band. Toda a gente diz que trabalha imenso. E não tem inimigos. E tem uma boa disposição.
Trabalho imenso. E tenho inimigos. Tenho boa disposição, mas com acessos de mau feitio. Merdinhas que me chateiam. Dizem que quando estou a dirigir sou mais bruto do que como ator. Quando me dirijo no teatro, penso sempre se estou a ser benevolente para mim ou mais rígido do que seria.
A vida de ator de novela não é o mesmo que picar o ponto? É diferente da vida no tempo da "Vila Faia"
É, não temos quase vida própria. Na melhor das hipóteses, gravamos quatro dias por semana. Entramos em estúdio às 8h30 da manhã e saímos às 7h30 da noite. E venho para casa estudar o papel, calhamaços com 30 cenas. À sexta lá se vai jantar fora. Vida de ator de novela é assim aqui, no Brasil, na Colômbia, em toda a parte. Na "Vila Faia" éramos um grupo de amigos, jantávamos juntos, ficávamos na caturreira. Hoje há atores que são bons, mas não sei quem são. Aquilo é uma máquina de produção. Tecnicamente, não tem comparação. Às vezes, reencontra-se um bocadinho o velho espírito, e tem de ser, para aguentar. Aquilo não é um quartel, são atores, lidam com emoções. É a nossa cara que aparece, há que ter cuidado com ela. A câmara pode ser a maior inimiga ou a maior amiga. No meu caso, é instintivo. A câmara faz parte da minha vida diária. Mas não trago a personagem para casa.
No Método anda-se com a personagem o tempo todo. É-se a personagem.
A Stella Adler, que foi professora do Marlon Brando, acabou com isso.
Resulta. Veja-se o "Lincoln" do Daniel Day-Lewis.
É maluco. É esquizofrénico.
E pode alguém ser ator sem ser um bocado esquizoide?
Somos todos. Quanto baste. Toda a gente quer ter mais de uma vida. Temos de saber cortar. Não posso chegar aqui a casa e ser o banqueiro que estou a fazer, um gajo que bate na mulher e é maldisposto. Sabe o que disse o Hopkins quando lhe perguntaram que género de ator era? Sou do género: chego, faço, recebo, vou-me embora. Sou assim. O nosso papel é transmitir emoções e, se o fazemos, o papel está cumprido. E cada um tem o seu método.
É possível fazer isso com um mau texto?
É mais difícil. Consegue-se. Com um bom texto é mais fácil. Corta? Acabou.
O Marlon Brando era do Método, do Strasberg. Duvido que chegasse, recebesse, fosse embora...
Lixou-se com o Método e foi para a Stella Adler. No "Apocalypse Now", quando lhe perguntaram que pausas eram aquelas, ele respondeu que não eram pausas, era ele a olhar para as coisas que tinha escritas. Tinha cábulas nas paredes. No "Último Tango", tem um monólogo lindíssimo junto ao caixão, e quando lhe perguntaram porque não olhava para a câmara ele respondeu que tinha a cábula no fundo do caixão. Tinha de ler. O resultado é bom. Eu consigo estar a chorar e a falar de outras coisas ao mesmo tempo. Estou treinado, sou velho.
Escolheu ser ator. Sem tradição dramática na família.
Nenhuma. A minha mãe tinha o curso superior de Piano e acho que um tio-avô cantava maravilhosamente. Entrei no Conservatório como segunda opção. O meu avô perdeu a fortuna e vim com os meus pais para Lisboa. Aos 9 anos. O meu primeiro grande choque em Lisboa foi abrir uma porta e não estar na rua. Haver elevador. A porta dava para o campo. Tornei-me um miúdo de Lisboa. Eu gostava muito de cantar, e um professor de canto ouviu-me e disse que eu devia aprender, tinha uma grande voz. E passei pelos professores de canto todos. Fui ter à Juventude Musical e à Merope Floresta, italiana, considerada a melhor intérprete da “Madama Butterfly” de todos os tempos. Ela disse-me que tinha um dom e devia aproveitá-lo. Eu tinha entrado em Direito e acabei por desistir. Decidi: vou cantar, doa a quem doer. O meu pai chamou-me e disse que se queria cantar tinha de fazer tudo como deve ser. Estudar teatro e ópera. E fui para o Conservatório. Mas Conservatório, copos à noite e Direito era muito. E o canto era para um corredor de fundo, disciplina férrea. Não há copos, não há meninas, e quando chegou às meninas chateei-me. Desisti do canto e continuei no Conservatório como ator dramático. Era pior que ser cantor. Fui logo para a comédia. Quando acabo o Conservatório sou contratado pelo Vasco Morgado e estou 25 anos a fazer comédia.
O pai e a mãe reagiram bem?
A minha tia Teresa, no dia em que fui para o Conservatório, telefonou à minha mãe a dizer: agora temos palhaços na família! E tinham. E têm. E depois foi a minha maior fã. Só voltei a fazer drama quando comecei a fazer novela.
Fez revista.
Muito. A revista é uma tarimba do caraças. Uma escola. O Lawrence Olivier achava que o vaudeville era fundamental para um ator. Começo a fazer novela e estou 20 anos só a fazer drama. Hoje só canto na casa de banho. Tenho uma voz colocada por causa da ópera.
Qual é o seu maior problema técnico?
Nunca tive. Comecei por baixo e fui subindo muito devagar.
Certos atores e encenadores acham que fazer certos papéis, em certos lugares, é uma diminuição. Caem os parentes na lama. Você está-se nas tintas.
Borrifando. Um dia convidaram-me para fazer o "Morangos com Açúcar". Os meus pares, da minha idade, disseram-me que não podia aceitar. Porque não?
O Ricardo Pais disse uma vez que o Diogo Infante era sobretudo um ator de televisão, o que o desqualificava para dirigir o Teatro Nacional.
Isso é fascismo puro.
Mas a telenovela cria vícios de representação. O famoso estilo "naturalista", de que as pessoas gostam. Ora o teatro não é natural, muito menos naturalista.
Certas peças. E no teatro tem de se ser ouvido na última fila. Agora já se usa microfones, no meu tempo não se usava. E há peças naturalistas. "A Streetcar Named Desire" ["Um Elétrico Chamado Desejo"] é uma peça naturalista.
O que é que gostaria de fazer em teatro?
"Desejo sob os Ulmeiros", do Eugene O'Neill. E estou na idade certa para o fazer. Eu nunca leio críticas sobre mim, nem boas nem más. A única que guardei foi quando me estreei: um crítico - já morreu - disse que, quanto ao estreante Nicolau Breyner, aquilo que o senhor faz não é representar, é estar em casa.
Nem todos têm o seu talento. É capaz de dizer a um jovem que ele não tem jeito para aquilo? Que deve desistir? Mesmo que seja uma menina com a cara da Marilyn?
Sou. E digo.
Vivemos na cultura jovem, na apologia do jovem, o jovem talento, o jovem isto e aquilo, o prémio jovem, todo o jovem é um génio por descobrir... Ser-se velho é um pecado em Portugal, como se nota. Dantes, era ao contrário, o jovem não riscava.
É verdade. É jovem, logo é bom. Em Portugal mais do que nos outros países. É a cultura do usa e deita fora. O velho sabe mais. No meu tempo, nunca mandávamos. O menino não tem querer. Crescemos, e quem manda em nós são os jovens. Ou seja, nunca chegámos a mandar. Eu nunca mandei. Às vezes, tenho pena dos miúdos da telenovela, num dia são conhecidos na rua, sem terem base, e no outro ninguém sabe quem são. A culpa é dessas revistecas e jornais.
No seu tempo não havia o domínio das revistas do coração, da imprensa trash.
Não. E quando se era entrevistado era preciso ter algum valor. O Biography Channel fez a biografia da Luciana Abreu.
Quem é?
Canta e faz coisas na novela. Foi casada com um jogador de futebol. De mim nunca fizeram, veja bem. Estão loucos. Ela não é destituída de talento, está mal aconselhada, mas tem cinco anos de carreira.
O que diz tudo sobre quem manda no Biography, mas não diz nada sobre si. Ser velho é um anátema. O Alentejo é um território de velhos.
O velho na província é mais respeitado do que aqui. Nas zonas menos civilizadas do planeta, como em África, o velho é mais respeitado.
Já disse que não voltaria a ser candidato, mas saiu uma notícia a dizer que era candidato às europeias por um partido eurocético.
Não sou! Eu nunca fui um europeísta convicto, fui sempre um eurocético. A minha curta experiência como empresário diz-me que, quando uma grande empresa quer absorver uma pequena, quem se lixa é a pequena. Quem se lixa é Portugal. Entrámos cedo de mais no euro. Construímos a casa pelo telhado. Tínhamos a mania que éramos ricos.
Veio para cá muito dinheiro.
E soube bem, mas é como os dealers: dão a primeira dose e fazem pagar a segunda. Ficámos agarrados. Ora, não há jantares de borla. E agora veio ter comigo um grupo de pessoas que me falou na ideia de sairmos do euro. Eu disse que tinha alguma simpatia pela ideia mas que achava que sairmos do euro agora era um disparate total. Catastrófico. Temos de tentar sair desta crise unidos.
Uma parte da população portuguesa foi duramente punida. Os velhos, por exemplo.
A maior parte da população foi e é gravemente punida. É terrível o que se passa com os velhos e os outros. Mas não sei, com honestidade, se haveria outra solução. Quando se pede emprestado tem de se pagar ou não voltam a emprestar. Há pessoas com mais privilégios do que outras? Há. Temos de acabar com a corrupção que existe? Temos.
Você acha que existe Estado a mais ou que o Estado é sistematicamente mal administrado?
Os nossos "Estados" vieram acumulando erros e dívidas e agora estamos a tentar remediar.
É de direita? Foi candidato pelo CDS.
De modo nenhum. Fui um independente apoiado pelo CDS. Sou um católico praticante, humanista, profundamente preocupado com o seu semelhante. Todos os dias penso em fazer bem a alguém. E sou completamente democrata. Sou contra qualquer autoritarismo e lutei contra isso antes do 25 de abril, com os meus amigos, que estão no PS quase todos. E sou de uma família tradicional de direita. Direita, direita, as pessoas não sabem bem o que é em Portugal. Hoje sou filiado no PSD.
O que é hoje o PSD?
Um partido com problemas lá dentro, que são naturais no momento que se atravessa.
Não desconfia dos pernaltas que passam pelos partidos para se servirem a si mesmos? Passam de ministro para a empresa com a qual contrataram enquanto ministros? O país não podia e devia ser mais bem administrado?
Claro! E ainda pode vir a ser mais bem administrado. Mas não acho que esteja a ser mal administrado. Está-se a fazer um grande esforço. Passos Coelho está a fazer o que tem de fazer. É bom? É mau? Podia fazer mais ou menos? Não estou cá para julgar. O Pedro Passos Coelho está a fazer o que pode. Acho que é uma pessoa honesta.
Rodeado...
Se calhar, de gente menos honesta. Tenho a certeza absoluta de que é um homem honesto. E acho que o António José Seguro é um homem honesto.
Um mau político, mas um homem honesto.
E o que é mais importante? Ser um grande político ou uma pessoa honesta? Tivemos políticos brilhantes que foram, pelo menos, intelectualmente desonestos. Kennedy, Mitterrand, Blair, Clinton, etc.
Acho mais importante ser uma pessoa honesta. Mas uma pessoa honesta é ideal para governar um país? Se calhar, não é. Tem de lidar com os desonestos todos.
Acredita na famosa recuperação?
Ao bolso do português ainda não chegou, mas há índices. Sinto-o como cidadão. Apesar da descida do meu ordenado e do aumento de impostos, não me posso queixar. Sou um privilegiado. Nunca refilei, porque sempre achei que era a mim e a outros como eu que tinham de ir. Mal os que estão na rua, os que não têm dinheiro para pagar a Segurança Social, os velhos, os desempregados.
Muita gente vem ter consigo, uma figura pública, e pede ajuda?
Muita, e quando posso ajudo. É o meu lado cristão. Não sei se sou um bom católico, mas não sou um mau cristão.
Como é que um católico pode casar tantas vezes? Você é a nossa Elizabeth Taylor...
Estive casado cinco vezes. Nunca casei pela Igreja. Também por razões fortuitas, por estar com pessoas que já tinham sido casadas pela Igreja. Não tenciono casar mais nenhuma vez.
Publicado na Revista de 1 de março de 2014
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