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Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

As mágoas de Lima num livro de espiões

Estava Fernando Lima a conversar com um jornalista quando entrou no café um homem suspeito. Suspeito, explica o antigo assessor de Cavaco Silva, porque usava “óculos escuros característicos dos usados por seguranças de entidades oficiais”. Espião que é espião não sai de casa sem a farda. Se é para espiar, põem logo os óculos escuros que dão lá no serviço. Mas apesar dos óculos, o espião, matreiro, tentou enganar o astuto Lima. Na mão, trazia “um conhecido diário do Rio de Janeiro”. “Provavelmente para servir de disfarce e fazer-se passar por brasileiro.” Só que para além dos óculos, o imprudente espião esqueceu-se que tinha matrícula no carro. Fernando Lima acabou por descobrir que se tratava de um ex-militar.

Tem havido muito gozo imerecido com Fernando Lima. Apenas porque o seu livro está recheado de histórias assim. Histórias que dão a entender que Fernando Lima pode ter ficado, através do convívio com o político português conhecido por se rodear de seguranças, um pouco paranoico. Mas gostava de ver outros no seu lugar. Estar a conversar com um jornalista e entrar no café um homem de óculos escuros e jornal brasileiro na mão e descobrirem depois que se tratava de um ex-militar. Quem não ficaria com a certeza de estar envolvido numa tenebrosa conspiração política?

Ainda se fossem apenas estes os sinais. Mas Lima também leu comentários de leitores sobre Cavaco Silva numa coluna de opinião de Ferreira Fernandes. Não é evidente que qualquer pessoa que ande a espiar os e-mails da Presidência da República vai a correr para uma caixa de comentários de um jornal e despeja lá tudo? E como sabia o PS, no enorme mundo da política nacional onde nada se sabe e ninguém se conhece, que assessores do Presidente da República colaboravam na elaboração do programa do PSD? Haveria outro meio que não fosse a espionagem?

Não chega tudo isto para passar esta informação, que nos EUA deu direito à queda do Presidente, para a comunicação social? Para Fernando Lima chegou. E, tivemos agora a confirmação, para Cavaco Silva também. Uma coisa é certa: em Belém estiveram dois paranoicos ensandecidos. E o mais extraordinário é que, escarrapachada a sua paranoica teoria nos jornais, Lima acredita ter sido Belém a vítima de uma armadilha. A culpa da sua irresponsabilidade foi, afinal, daqueles que ele acusou sem qualquer prova, num processo que deveria ter levado a uma séria investigação com responsabilização criminal de quem, de forma leviana, pôs em causa as instituições do Estado. Não se manda para os jornais que a Presidência da República está a ser escutada pelo governo e a vida continua. Extraordinariamente, em Portugal continuou.

A coisa correu mal e o paranoico Cavaco fez ao paranoico Lima o que fez a todos os que o serviram e de quem ele se serviu. Depois de lhe ter dado a ordem para espalhar a calúnia mandou o seu mais próximo colaborador de quase duas décadas para o sótão do Palácio de Belém. E em público, pelo menos com Sócrates próximo, até terá fingido, diz o próprio, não o conhecer.

Longe de Lima, conclui o próprio Lima, Cavaco transformou-se “numa figura receosa, recuada, impercetível, cujo carisma se evaporou”. Tende a acontecer a todos os que perdem as suas almas pardas. E Fernando Lima, apesar de ser difícil acreditar ao ler o seu estapafúrdio livro, era a arma secreta de Cavaco. Ficou magoado, claro. Ficou revoltado, evidentemente. Ficou em Belém até ao fim do mandato, apesar do desprezo do seu chefe. Há homens de ferro. Ou de borracha. Depende da perspetiva.

De tudo o que Lima resolveu partilhar connosco, num livro que mais não é do que uma vingança contra um político sem lealdades ou amizades, que tem o hábito de trair os que lhe são mais próximos, apenas interessam três coisas. A primeira é lúdica: ver como cada episódio corriqueiro pode ser transformado num filme espiões. É como se através da cabeça de Lima chegássemos à cabeça de Cavaco. A segunda é uma revelação: Fernando Lima diz que um procurador informou Cavaco Silva que o seu cunhado, Luís Montez, constava das escutas da “Face Oculta”. Espero pela abertura de uma investigação para saber quem é o magistrado que dá informações a políticos sobre escutas a familiares seus, violando a separação de poderes e o segredo de justiça. A terceira é uma confirmação: Fernando Lima garante que enviou para os jornais a acusação não fundamentada de que a Presidência estaria a ser escutada pelo governo por ordem de Cavaco Silva.