DECLARAÇÃO DE AMOR I
O Porto é simpatia rude, é estado de alma. E é um bom sítio para usar casacos e andar na rua agarradinho
FOTO RUI DUARTE SILVA
O Porto voltou a ser nomeado melhor destino europeu e pedimos que nos fizessem uma declaração de amor à cidade. Carlos Tê e Rui Reininho, homens das canções e da cidade, têm o Porto no coração e nas palavras e o amor fica-lhes certamente bem. Ei-los a declarar: começamos por Reininho mas podíamos abrir com Tê, acabamos com Tê mas podíamos encerrar com Reininho - aqui não interessa a ordem mas a cidade. Que é uma cidade com ordem que nos desordena a alma - o Porto é agitação e é provocação, é rebelde e é lindo, o Porto é o Porto e é de nós todos
TEXTO RUI REININHO (a partir de um depoimento recolhido por Cristina Margato)
O MEU FADO É O PORTO. É O FADO À MODA DO PORTO
Não é pelo facto de ter nascido aqui que gosto do Porto. É uma cidade com personalidade e de uma simpatia rude. Gostar do Porto é um estado de alma. Hoje é uma cidade de amigos, uma amizade que toca as raias do amor. Gosto do Porto no outono quando começam a vender violetas e castanhas. No inverno porque é bom para as tosses. A primavera é jeitosinha. Só não gosto no verão. A não ser para ir para as praias, para apanhar a nortada e carneirinhos no mar, ou para subir o rio. Já experimentei viver em vários sítios e acabo por cá voltar, embora neste momento esteja a residir junto à praia, entre a foz do Douro e a foz do Rio Leça. Em Matosinhos é o estúdio dos GNR e eu moro a 10 minutos de bicicleta. Fico a tomar conta das entradas da cidade do Porto.
FOTO RUI DUARTE SILVA
Gosto da cidade e das pessoas lá dentro. Lamento que muita gente tenha sido empurrada para fora pela especulação imobiliária. Daí o Porto ficar contente com tantas visitas, mas o turismo não traz só coisas agradáveis. Tenho Sizas que cheguem à porta de casa, e bem bonitos, os primeiros, dos anos 60, como a Piscina das Marés e a Casa de Chá da Boa Nova. É como os Beatles. Gosto mais das primeiras canções.
Sou um homem da Baixa. Morei lá até os meus pais se verem livres de mim. Passei lá a minha infância e adolescência. Andei na Escola Alexandre Herculano (que hoje está cair aos pedaços) para a qual ia a pé. Ficava a cinco minutos de casa e não tinha desculpa para chegar atrasado. Também vivi entre Paranhos e Antas, ao pé do campo de futebol do Salgueiros.
FOTO RUI DUARTE SILVA
Durante o regime totalitário, um reinado que tivemos aqui, do nosso salazarito, que prefiro não dizer o nome porque não merece ficar para a história, fui para a capital do império. Também andei por Valbom e Leça de Palmeira e acabei por ficar em Leça. Não conto mudar-me. Já digo outra vez “ir ao Porto”, que dantes até as pessoas da Foz diziam.
O Porto nem sempre cheirou bem. Agora cheira melhor. Está mais bonito e mais airoso. Ao contrário de muitos mais colegas de profissão que fazem uma perninha na restauração, os turistas a mim não me ajudam nada mas também não me incomodam. Toda a gente é bem-vinda desde que venham colaborar. Claro que não gosto do fim do comércio tradicional mas isso já acontecia antes com os centro comerciais.
Se tivesse que convencer alguém a ir ao Porto, dizia: “Ficas cá em casa!”. Há quem me diga: “Eu vou ao Porto e está a chover”. Mas isso não é bom? É um bom sítio para usar casacos e para andar na rua agarradinho.
DECLARAÇÃO DE AMOR II
Um Porto cosmopolita sim, mas sem curvatura de espinha
FOTO RUI DUARTE SILVA
Carlos Tê, compositor, letrista e contista de algumas das mais belas canções de tributo à alma portuense, deseja que a cidade continue a ser uma mulher requintada e cortejada, sem perder a fronteira entre decência e cupidez
TEXTO CARLOS TÊ (a partir de um depoimento recolhido por Isabel Paulo)
Não sei dizer o que representa este tricampeonato turístico para a cidade do Porto. Não sei se será bênção ou maldição. Não sei se atrairá mais gente que nos atravancará as ruas até quase nos sentirmos a mais.
Mas é, com certeza, um motivo de orgulho. A sua história recente é a história do país ao tentar encontrar um lugar no mundo moderno. Mas talvez o que tenha feito do Porto um lugar especial tenha sido esse modo de despir a casaca provinciana sem querer agradar incondicionalmente nem perder a identidade, ou seja, aprendendo o alfabeto cosmopolita sem a curvatura de espinha que bajula o visitante com uma vénia excessivamente simpática.
FOTO D.R.
Daqui para a frente, a grande luta será manter esses traços, sabendo que o turismo pode causar danos com o seu flirt contínuo, onde o comércio de um bem, que é a alma e o corpo duma cidade, se confunde facilmente com um mero negócio terciário.
O Porto lembra-me uma moça que se vestia mal e respondia com maus modos às provocações dos rapazes, mas sempre pronta a fazer um recado a uma pessoa necessitada. Depois a moça cresceu e tornou-se uma mulher requintada e cortejada, com um lado solar desconhecido, mas capaz de estabelecer uma fronteira entre decência e cupidez.
FOTO RUI DUARTE SILVA
E a nós, que já cá estávamos e que sempre lhe pertencemos sabendo que ela nos pertencia, cabe-nos impedir que ela se torne uma cortesã que só quer saber da caixa registadora. Para isso, pedimos-lhe que não abdique da sua elegância quase truculenta e que saiba lidar com o seu novo estatuto de vedeta das cidades.