ARQUIVO EXPRESSO

Steve Jobs, o génio imbecil

Vinganças mesquinhas, ataques de fúria, ideias revolucionárias. Assim era Steve Jobs, o fundador da Apple. Arquivos Expresso recuperam o perfil publicado em 2015, no dia em que a Apple apresenta o novo iPhone

Texto HUGO FRANCO Ilustração Luís Grañena

Ser génio e ao mesmo tempo um imbecil de todo o tamanho. Os dois requisitos podiam coexistir várias vezes ao dia no caso de Steve Jobs. Aos 23 anos, quando o jovem hippie da Califórnia saboreava os primeiros momentos de glória com a criação do revolucionário Apple II, nascia Lisa, filha da sua namorada Chrisann Brennan, com quem partilhou muitas das experiências alucinogénicas do LSD. Dias depois de ter assistido ao parto, numa quinta comunitária do Oregon, Jobs negou a paternidade da criança e recusou-se a dar-lhe assistência financeira. E nem um teste de paternidade ordenado por um tribunal, que dava 94,4% de hipóteses de ser ele o pai, o fez mudar de ideias. No trabalho, dizia aos colegas que andava a ser perseguido por Chrisann e raramente visitava a bebé. Apesar de a sua conta bancária começar a engordar, limitou-se a dar a Lisa uma quantia de 385 euros por mês. Alguns anos mais tarde viria a reconhecer o erro, aceitando a filha que renegara, mas a relação entre os dois nunca seria tão profunda como a que tinha com os três filhos do casamento com Laurene Powell Jobs.

Consumia LSD, andava descalço, adorava a ideia de viver em comunidade, mas tinha uma mansão e um BMW.

Não ganhou muito juízo com a idade. Mas apesar de tudo esforçou-se. Poucos anos antes de morrer, quase cuspiu pelo telefone quando o jornalista e amigo Brent Schlender o informou de que o cantor Neil Young queria enviar-lhe uns discos em vinil remasterizados: “— Que se foda o Neil Young!”, terá dito Jobs do outro lado da linha, desligando o telefone pouco depois. O rancor antigo contra o consagrado artista de rock vinha à tona da pior maneira. Neil Young repetira durante anos, alto e bom som, que a qualidade da música digital dos CD e dos ficheiros áudio era muito inferior à dos LP analógicos. Declarações que eram uma ofensa para o criador do iPod e do iPhone.

A raiva acumulada contra aqueles que considerava inimigos da Apple materializava-se quase sempre das formas mais mesquinhas: recusou-se a utilizar nos seus gadgets o programa Flash, da Adobe, pelo facto de o fundador daquela empresa, John Warnock, ter também apoiado o Windows com aquele software, numa altura em que a Apple se encontrava em declínio. O gesto transpirava vingança por todos os poros.

Os ataques de fúria protagonizados pelo homem nascido a 24 de fevereiro de 1955 em São Francisco tornaram-se célebres. A biografia não autorizada sobre Steve Jobs — mas aprovada pela Apple —, “A Transformação de Steve Jobs” (Saída de Emergência), escrita pelos jornalistas Brent Schlender e Rick Tetzeli e publicada em 2015 em Portugal, aborda uma mão-cheia deles. Os primeiros, de contornos épicos, ocorreram ainda na garagem dos pais adotivos, Paul e Clara Jobs, em Los Altos, um dormitório próximo da zona conhecida como Silicon Valley. Em 1976, a garagem, que costumava ser usada pelo pai para guardar e restaurar carros em segunda mão e onde ensinou o filho adotivo a usar um martelo e uma serra para construir todo o tipo de geringonças, transfigurou-se numa espécie de linha de montagem. Jobs, a irmã adotiva, Patty, o sócio Stephen Wozniack, o amigo do liceu Bill Fernandez e outros rapazes da vizinhança soldavam chips para o Apple I, encomendado pelo dono de uma humilde loja de computadores, a Byte Shops, situada na via principal de Silicon Valley. O dono pagava 500 euros a Jobs e Woz (diminutivo com que era conhecido Wozniack) por cada placa de circuito completamente montada com todos os chips soldados. Dez vezes mais do que aquilo que a dupla costumava cobrar.

Tal como numa fábrica comum, o trabalho era feito por turnos de modo a garantir que as centenas de placas-mãe de computador fossem acabadas a horas. Até a mãe foi contratada para atender os telefonemas de clientes. Só que quando as coisas corriam mal, Steve Jobs disparava em todas as direções, criticando ferozmente o trabalho da equipa, muitas vezes de forma injusta. “Não era fácil trabalhar para ele”, viria a resumir um dia o rival Bill Gates, fundador da Microsoft. Apesar de sofrer com os acessos recorrentes de mau génio, o grupo conseguiu entregar a tempo todas as placas de circuito encomendadas. Uma vitória, ainda que com um sabor levemente amargo, já que foram vendidos menos de duzentos Apple I.

FRACASSO, SUCESSO, FRACASSO...

O fantasma do fracasso pairou mais vezes do que Steve Jobs gostava de admitir, mesmo aos mais próximos, algo que também é explorado no filme sobre o empresário que se estreou em Portugal no dia 12 de novembro de 2015.

Justin Sullivan/Getty

Justin Sullivan/Getty

A Apple, fundada no dia das mentiras de 1976, viria a mudar-se da garagem dos pais de Jobs para uns escritórios na Stevens Creek Boulevard, em Cupertino. Jobs era o empresário e Woz o génio da engenharia. Depois do sucesso retumbante do computador Apple II, o ganha-pão da empresa de Cupertino durante muitos anos, veio a sequela, o Apple III, que se revelou um desastre. Ao fim de algumas semanas, centenas de compradores devolveram o computador e exigiram o dinheiro de volta pois o Apple III sobreaquecia perigosamente. Havia casos em que a placa-mãe ficava tão quente que a solda derretia, soltando os chips: como resultado, 14 mil aparelhos tiveram de ser substituídos.

Em 1984, nem o Macintosh, o computador “dos audazes, rebeldes e criativos”, que permitia ao utilizador usar essa novidade chamada rato e criar ficheiros semelhantes a um documento em papel, conseguiu salvar Steve Jobs. Operações de charme, como enviar Macs para Mick Jagger ou Andy Warhol, de pouco serviram para inverter o decréscimo de vendas do computador que, apesar do design mais do que perfeito, era demasiado lento e tinha uma drive de disquete em vez de um disco rígido — complicando a vida aos utilizadores que tinham de copiar ficheiros de uma disquete para outra. Ainda assim, o Macintosh era reconhecidamente uma obra-prima saída do génio e de uma teimosia a raiar a obsessão. Uma espécie de culto, criado essencialmente por geeks da informática, ia crescendo em redor do computador e do seu criador.

Jobs, que nessa altura já se poderia considerar uma estrela mundial, fez uma festa de arromba para celebrar os trinta anos, convidando Ella Fitzgerald para cantar perante mil convidados no Hotel St. Francis, em São Francisco. O ego insuflava-se de dia para dia, garantem dezenas de pessoas entrevistadas pelos seus biógrafos. Scotty, o novo CEO da Apple, decidiu que Woz seria o funcionário número um da empresa. Quando Steve Jobs descobriu queixou-se a Scotty e este acabou por ceder aos seus caprichos: se Woz era o número um, Jobs passou a ser o número zero. A exigência extravagante teve efeitos nefastos, minando a relação entre os dois fundadores da empresa e a sua posição na Apple.

O estatuto de celebridade não impediu o progressivo afastamento de Jobs da empresa que ajudara a fundar. Um dia, simplesmente deixou de ser chamado para as reuniões onde se tomavam as decisões importantes. Foi nessa altura que decidiu passar mais tempo com Lisa, a filha adotiva, e até se candidatou a fazer uma viagem no vaivém pelo espaço. Fez longas viagens, mas em terra, atravessando a Europa. Visitou museus e gozou a vida de turista, algo que nunca tinha feito antes.

No regresso aos Estados Unidos, decidiu sair da Apple, empresa que valia então dois mil milhões de dólares e tinha mais de quatro mil trabalhadores, e fundar a NeXT, levando consigo alguns funcionários.

Só que a sua nova criação veio a revelar-se a maior de todas as deceções da carreira. Tudo era feito em grande escala na empresa, desde a sede, em Palo Alto: escritórios que pareciam saídos das revistas de design, um lobby com sofás importados de Itália e uma escadaria flutuante projetada pelo arquiteto I. M. Pei, o mesmo que desenhou a pirâmide do Louvre. Também a fábrica topo de gama, com capacidade de produzir 600 computadores por dia, era do melhor que havia no mundo. Só que os produtos lançados por Steve Jobs nunca convenceram os consumidores e eram gozados pela concorrência nos jornais. O milionário Ross Perot, que seria candidato à presidência dos Estados Unidos, viria a confessar mais tarde que “um dos maiores erros” que cometeu na carreira foi entregar centenas de milhões de dólares a Jobs naquele projeto.

GETTY

GETTY

A SEGUNDA VIDA E A MORTE

O azar da NeXT, mas sobretudo da Apple, acabou por ser a sorte de Jobs. Em meados dos anos 90, a companhia que fundara com Woz aos 21 anos perdia o campeonato com a Microsoft e ia definhando a conta-gotas na direção da bancarrota. Apesar dos anticorpos que havia criado, havia quem suspirasse pelo seu regresso. Mais do que nunca, a Apple precisava de frescura. E Jobs, com o repentino sucesso da Pixar — a empresa de animação em que apostara os últimos trunfos, desta vez com êxito —, voltava aprovar que aos 40 anos podia ser de novo o homem do momento. Em 1997, conseguiu convencer a Apple a comprar a NeXT e em poucos meses voltou a segurar na sua amada maçã. Os rivais apelidaram de loucos os membros da direção da empresa por voltarem a apostar em Jobs. Equivocavam-se.

A dispendiosa campanha ‘Think Different’ (Pensa Diferente) custou 100 milhões de dólares e foi o primeiro sinal de que uma nova era estava a chegar à empresa. Por ironia, depois de tantos anos a testar e a reinventar computadores, não seriam eles a salvar a Apple. O segredo estava na música. Primeiro, com a criação do iTunes, uma loja digital onde qualquer um podia comprar as suas canções preferidas por 99 cêntimos. Depois, ao inventar o iPod, um aparelho de design e funções sofisticadas que permitia ouvir milhares de horas de música. Para surpresa de Steve Jobs, o ‘modo shuffle’, que permitia ao consumidor escutar a sua playlist de modo aleatório, foi determinante para o sucesso daquele produto. A Apple conquistou o topo do mundo e nunca mais de lá saiu, principalmente quando o iPhone e o iPad se tornaram os aparelhos mais populares do planeta.

Este seria uma espécie de conto de fadas do mundo eletrónico se não fosse o caso de Steve Jobs descobrir, aos 49 anos, que tinha um tumor maligno no pâncreas. A cirurgia no Centro Médico da Universidade de Stanford, a 31 de julho de 2004, correu bem. E os sete anos seguintes viriam a ser dos mais produtivos e lucrativos da sua carreira. Já estava debilitado quando a 16 de junho de 2005 proferiu uma das mais célebres e inspiradas conferências na Universidade de Stanford, que foi vista no YouTube por 35 milhões de pessoas: “Stay Hungry, Stay Foolish”, pedia Jobs aos fiéis de todo o mundo.

Em 2009, submeteu-se a um transplante de fígado. O tumor acabou por se espalhar por outras zonas do corpo e ele só desejava estar vivo pelo menos a tempo de assistir à formatura do filho, Reed, na escola secundária. Foi perdendo peso e passou a trabalhar da mansão, onde se reunia com o núcleo duro da Apple e da Pixar, que entretanto fora vendida à Walt Disney. A poucos dias de morrer, anunciou a Tim Cook que seria o futuro CEO da Apple. Numa sexta-feira, os dois colegas e amigos viram o filme “Duelo de Titãs”, um melodrama passado no universo do futebol americano. Cook revelou aos autores de “A Transformação de Steve Jobs”, que o amigo parecia animado. Na terça-feira seguinte, a 5 de outubro de 2011, Jobs morreu. Tinha 56 anos. Steve Jobs foi sempre um poço de contradições: embora fosse cofundador da Apple não queria ser visto como um homem de negócios. Consumia LSD, andava descalço, adorava a ideia de viver em comunidade, mas também tinha uma mansão ao estilo de Hollywood e gostava de conduzir o BMW a alta velocidade. Era intransigente mas também ansioso por aprender. Afastava-se e regressava para pedir desculpa. E era teimoso. Uma teimosia que muitas vezes se revelava tóxica, noutras parecia ilógica, mas que deu ao mundo aparelhos tão revolucionários como o Macintosh, o iPod e o iPhone.

Nas cerimónias fúnebres marcaram presença figuras ilustres como os Clintons, Rupert Murdoch e até Bono e The Edge tocaram na sua despedida uma das suas músicas preferidas, ‘Every Grain of Sand’, de Bob Dylan. Dias depois, foi a vez de tocarem os Coldplay, cuja música fazia parte de muitos anúncios da Apple. O espetáculo era global. “Não nos vamos demorar muito. Nós sabemos que o Steve queria que voltassem ao trabalho”, disse Chris Martin, o vocalista da banda inglesa durante a despedida no campus da Apple em Cupertino.