A tempo e a desmodo
Henrique Raposo
Educadores masculinos: mea culpa
Por acaso, hoje é o dia indicado para este mea culpa. Neste primeiro dia de escola, a cidade ficou paralisada com o trânsito gerado pelos pais que levam os filhos à escola. Muitos destas crianças ou jovens já podiam andar sozinhos nos transportes, mas nós, pais, insistimos em ser pais-helicópteros. Porquê? Porque temos medo. É a grande diferença entre a gerações dos nossos pais e a nossa: nós temos medos que eles não tinham. À cabeça desses temores, está o abuso sexual e a pedofilia. Os escândalos das últimas décadas criaram uma psique hiper-sensível em relação ao assunto. Não fujo à regra. E sucede que a pedofilia é quase exclusivamente masculina. 96% dos pedófilos são homens. Não é uma chaga da sociedade em geral, é uma chaga do meu sexo ou género. Por outro lado, o facto de ser pai de miúdas só reforça o meu medo, visto que a cultura do assalto sexual às miúdas e mulheres não diminui. Nos EUA, por exemplo, uma em cada cinco mulheres é violada ao longo da vida; 75% das mulheres reportou ao longo da vida pelo menos uma agressão sexual que não a violação com penetração; uma em quatro meninas é abusada de alguma forma até chegar aos 18; o agressor é quase sempre alguém que elas conhecem. Os números assustam e alimentam com realidade objetiva um medo que me bloqueia enquanto pai.
Violações, abusos, bocas, perseguições, vídeos caseiros que funcionam como extorsão e chantagem na net, a chamada “violência doméstica” ou a “violência no namoro”, a exploração permanente do corpo feminino - tudo isto faz parte da realidade onde tenho de educar e proteger duas miúdas. E repare-se que o rapaz/homem é mais uma vez o agressor e a menina/mulher a vítima. Segundo o FBI, a agressão sexual é 98% masculina. Além do medo que sinto como pai, este é um tema que me interessa como escritor. O meu livro, “Alentejo Prometido”, está muito marcado pelo inferno da condição feminina naquele país antigo; leio muito sobre a violência lançada sobre as mulheres, desde os livros da Svetlana Alexievich até aos livros portugueses que tratam da violência doméstica. Mas, precisamente devido ao meu papel como escritor, não podia ter escrito o que escrevi há dias num texto chamado “porque é que não há educadores de infância masculinos?”. Quando escrevo, sou escritor antes de ser pai. Como tal, tenho o dever de filtrar e civilizar o medo. O medo não pode surgir de forma tão pura. Escrever implica dar um filtro frio e de tranquilidade a algo quente e intranquilo que está a montante. Não fiz isso naquele texto.
O texto não faz sentido porque lança um estigma sobre todos os homens, eu incluído; lança um estigma sobre professores e padres a quem devo muito. Se aquela lógica fosse levada até ao fim, não poderíamos ter pediatras homens, treinadores, padres, psicólogos, professores e, sim, educadores de infância; viver naquela ideia seria o mesmo que ceder ao medo de forma total e absurda. É impossível saber a percentagem de homens com instintos pedófilos e de violador. Já é assustador se pensarmos que são apenas 1% da população masculina. Seja como for, não podemos lançar um estigma sobre os outros 99%. Pergunto-me agora: como é que cedi assim de forma tão natural ao medo? Porque o medo tem esse encanto, torna as coisas irracionalmente óbvias. Cedi ao medo, fiquei num casulo que acabou numa espécie de feminismo radical (todos os homens são maus e potencialmente agressores), que inconscientemente impunha uma lógica machista (só as mulheres podem trabalhar com crianças). Eu acho que escolas, universidades e paróquias fustigadas com estes casos devem tomar medidas e criar um protocolo que torne as coisas mais transparentes. Existe porém uma grande distância entre isto e a ideia do meu texto inicial – uma espécie de discriminação negativa contra o homem nas profissões que implicam contacto com crianças e jovens.
Como todos os pais, tenho medos típicos do nosso tempo; medos que existem e que não podem ser escondidos. Como escritor e cronista, tenho dois deveres: falar desse medos (recusando a negação) mas de forma tranquila e fria. Falhei rotundamente na segunda fase. Mea culpa.