A tempo e a desmodo
Henrique Raposohenrique.raposo79@gmail.com
O incêndio do provincianismo português
Podia ser nos EUA, Canadá, Austrália, França FOTO RUI DUARTE SILVA
Às vítimas dos incêndios, só posso dizer que tenho rezado por elas. Aos milhões de especialistas em incêndios que brotam a cada agosto, só quero dizer uma coisa: levantem a cabeça do provincianismo. Funchal e Arouca ardem como ardem Marselha e toda a Alberta. Não há nada de especificamente português nestes incêndios. Países muito mais ricos e equipados (EUA, Canadá, Austrália, França e até Espanha) lidam todos os anos com este tipo de incêndios, com este tipo de desalojados, com este tipo de drama. Há uns meses, Alberta (Canadá) foi varrida por um mar de fogo. Neste preciso momento, o sul de França também está pintado com este laranja caótico; Marselha, a segunda cidade de França, está na rota de um destes cometas rastejantes. Quer isto dizer que a França é um “país atrasado” e “sem ordenamento do território”? Quer isto dizer que faltam “meios” aos bombeiros franceses? Quer isto dizer que não há “incendiários” por aquelas bandas?
Este paroquialismo estival divide-se em três pontos. O primeiro já foi abordado: num passe de mágica, o resto do mundo desenvolvido marcado pelos incêndios deixa de existir e tudo é discutido apenas e só num contexto português. E daqui nasce o segundo ponto: apesar de ser comum a outros países, o debate português isola esta tragédia e dá-lhe um toque especificamente português. Porque só assim é possível gritar a típica farpa queirosiana, “só neste país!”. Só neste país é que há corruptos. Só neste país há promiscuidade entre políticos e empresas. Só neste país é que há incêndios. Só neste país é que há falta de meios. É o parque de diversões do primeiro impulso do português, seja ele taberneiro ou doutorado: a autodepreciação, a ideia de que Portugal é um país especial pela negativa, a ideia de que Portugal não é um país normal com problemas normais semelhantes aos problemas normais de outros países normais. Se quiserem, é o reverso do quinto-império que se viveu há um mês com a conquista do Europeu. Portugal é especial porque até em Timor se comemorou o golo de Éder! Portugal é especial porque sabemos ganhar de forma especial, basta ver aquele menino que abraçou o francês em lágrimas! É como se não existissem crianças amorosas noutros países, é como se Portugal não tivesse sido uma potência colonial e racista como todas as outras.
O terceiro ponto do provincianismo estival está relacionado com o absurdo desprezo pela natureza. O debate português parece assumir que a força do homem é superior à força da natureza. Com quarenta graus de dia e trinta graus à noite, com zero humidade no solo e com ventos fortes e quentes, até poderíamos colocar um bombeiro e um bombardeiro de água em cada serro, mas os incêndios iriam sempre aparecer. A natureza conta, aliás, a natureza manda. Não vale a pena fingir que um Estado pode isolar uma população das agruras dos elementos. Quer isto dizer que não podemos fazer melhor no combate e na prevenção? Claro que não. Pode-se fazer melhor, sim, mas este clima histérico que se vive a cada agosto impede precisamente um debate racional sobre o nosso território.