MEMÓRIA | FRANCISCO VARATOJO

É como se não tivesse morrido: o homem que queria pacificar o Mundo pela alimentação

Francisco Varatojo: “A saúde não é apenas uma mera ausência de sintomas mas está ao alcance de todos, através de um estilo de vida mais saudável e de acordo com as leis da Natureza” Foto Conta do Facebook de Francisco Varatojo

Francisco Varatojo: “A saúde não é apenas uma mera ausência de sintomas mas está ao alcance de todos, através de um estilo de vida mais saudável e de acordo com as leis da Natureza” Foto Conta do Facebook de Francisco Varatojo

A sua memória é tão forte, o seu carisma e a sua influência são tão grandes no movimento macrobiótico mundial que parece continuar vivo um pouco por todo o lado: nas redes sociais, nos livros, nos ensinamentos que deixou a alunos, professores, amigos e familiares. Francisco Varatojo

Texto Virgílio Azevedo

Junho de 2015. Numa sala cheia de gente na Livraria Bertrand no Chiado, em Lisboa, os radialistas Ana Galvão e Nuno Markl fazem uma apresentação animada do livro “Os Alimentos Também Curam” (editado por A Esfera dos Livros). A obra trata de um tema fraturante: como prevenir e enfrentar os problemas de saúde mais comuns através da Macrobiótica.

O autor é Francisco Varatojo, diretor do Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP), e a sessão termina com música ao vivo de um cantor que eu e a maior parte das pessoas presentes não conhecia: Salvador Sobral. Antes de começar a cantar, acompanhado por um guitarrista, o artista fala para a plateia e confessa: “Tenho muito gosto em estar aqui na apresentação deste livro, porque o Francisco Varatojo salvou-me a vida”.

Francisco Varatojo com o então desconhecido cantor Salvador Sobral em 2015, no lançamento do seu livro “Os Alimentos Também Curam”, na Livraria Bertrand do Chiado, em Lisboa Foto Conta do Facebook de Francisco Varatojo

Francisco Varatojo com o então desconhecido cantor Salvador Sobral em 2015, no lançamento do seu livro “Os Alimentos Também Curam”, na Livraria Bertrand do Chiado, em Lisboa Foto Conta do Facebook de Francisco Varatojo

Francisco Varatojo, 56 anos, que morreu no dia 6 de julho no fundo do mar, a 18 metros da superfície, depois de um mergulho junto ao Cabo Espichel, perto de Sesimbra, deu a volta à vida e à saúde de muita gente de uma forma única. Conheci-o há mais de 30 anos, quando a Macrobiótica era encarada pela esmagadora maioria das pessoas como uma alternativa muito exótica, estranha e austera, uma filosofia de vida e uma forma de alimentação que punham em causa as rotinas e os valores dominantes de um país onde a democracia estava a dar os primeiros passos.

Na cadeia do Linhó

O diretor do IMP tinha regressado há pouco tempo dos EUA e algumas das suas primeiras conferências começaram no local mais improvável: a Cadeia do Linhó, no concelho de Sintra. Tudo porque um grupo de presos – por crimes como assalto à mão armada ou tráfico de droga – ouviu falar da Macrobiótica e queria conhecê-la a fundo, mudar de alimentação e de vida.

E mudaram mesmo. Quando saíram da prisão tornaram-se cozinheiros macrobióticos, divulgadores e até professores. Passaram-se décadas, mas a verdade é que em 2016, por exemplo, vários estudos no Reino Unido concluíram que a melhoria na qualidade da alimentação nas prisões britânicas através da introdução de mais vegetais e mais fruta diminuía os incidentes disciplinares, as agressões e os comportamentos violentos dos detidos.

Uma das grandes paixões de Francisco Varatojo era o mergulho. Mergulhou umas 500 vezes ao longo da vida e adorava pairar no fundo do mar e gozar a sensação de liberdade e de serenidade total, observando peixes, corais, prados marinhos em movimento e tudo o que se mexia à sua volta Foto Conta do Facebook de Francisco Varatojo

Uma das grandes paixões de Francisco Varatojo era o mergulho. Mergulhou umas 500 vezes ao longo da vida e adorava pairar no fundo do mar e gozar a sensação de liberdade e de serenidade total, observando peixes, corais, prados marinhos em movimento e tudo o que se mexia à sua volta Foto Conta do Facebook de Francisco Varatojo

Mas afinal o que é a Macrobiótica? A palavra parece complexa mas o seu significado é simples. Segundo o IMP, “tem a sua origem etimológica nas palavras gregas “makro” e “bios”, significando literalmente “grande vida”. Esta grande vida não se refere apenas à longevidade, mas também a tudo o que de grande a vida pode, e deve, ter: felicidade, amor, liberdade, paz, harmonia”.

Baseada em princípios milenares, “a Macrobiótica chega-nos através das mais saudáveis tradições orientais e ocidentais, constituindo-se como uma filosofia de vida e uma vivência que abrange e unifica todos os aspectos da civilização humana e da ordem natural”. A sua prática “conduz-nos a uma maior qualidade de vida a vários níveis: alimentação, exercício, respiração, emoções, pensamento e relações humanas”. E tem como pressuposto a ideia de que o ser humano “pode manter e recuperar a sua saúde, bem como responsabilizar-se pela sua própria vida e desenvolver um espírito de gratidão e respeito por tudo o que está à sua volta”.

Na pirâmide alimentar macrobiótica, os cereais integrais ocupam a base, com um peso de 40% a 60% da alimentação diária. Depois vêm os vegetais, incluindo pickles, responsáveis por 20% a 30% dos alimentos diários. Seguem-se as leguminosas e derivados (como o tofu, feito a partir do feijão de soja), que ocupam 5% a 10% da dieta diária, e as algas marinhas. Depois figuram os temperos e condimentos - incluindo sal marinho integral, miso (pasta de soja fermentada) e molho de soja - e o óleo vegetal. De uso ocasional há ainda a fruta, sementes, oleaginosas e adoçantes naturais feitos a partir de cereais ou de frutos. Finalmente, de uso ainda mais ocasional o peixe. Alimentos como laticínios, ovos ou carne são considerados opcionais, que podem ser usados como transição de forma esporádica ou, eventualmente, retirados. Estas são as recomendações para um clima temperado como o que existe em Portugal e na maioria dos países da Europa.

Energia contagiante

Acompanhei de perto a vida e a carreira de Francisco, o crescimento do Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP), as conferências nacionais e internacionais, as intervenções na TV e nos jornais, os livros que lançou. E também a sua família, o sua energia contagiante, o carisma, o poder de comunicação, o sentido de humor, a sabedoria, os seus sonhos de um mundo melhor, mais saudável, pacífico e sustentável. Passámos férias juntos, festas de fim de ano e de Carnaval, aniversários, vimos os filhos crescer.

Mas tenho dificuldade em falar dele no passado, porque o Francisco continua vivo dentro de mim e de muita gente. Afinal, o que torna as pessoas imortais é a sua memória. E a memória dele é muito forte, continua bem viva por todo o lado, nas centenas de fotos e vídeos que circulam nas redes sociais, no Youtube, nos sites da Internet. Nos seus livros. Nos seus ensinamentos guardados na mente e no coração de muitos alunos, professores e amigos de vários países espalhados por todos os continentes.

Final do ano letivo do Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP) com alunos e professores num hotel no Vimeiro (concelho da Lourinhã). O IMP tem todos os anos mais de 200 alunos nos seus cursos Foto Conta do Facebook de Francisco Varatojo

Final do ano letivo do Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP) com alunos e professores num hotel no Vimeiro (concelho da Lourinhã). O IMP tem todos os anos mais de 200 alunos nos seus cursos Foto Conta do Facebook de Francisco Varatojo

Alexandre Gama, consultor e professor de Feng Shui – um sistema filosófico de origem chinesa de harmonização de tudo com o ambiente circundante, hoje usado na decoração e na arquitetura – trabalhou diariamente com Francisco Varatojo durante cinco anos, quando foi gestor operacional do Instituto Macrobiótico de Portugal. E sente o mesmo do que eu: “Não consigo falar do Francisco no passado, porque a forma como ele viveu e o que nos deixou em mensagem, carinho e afeto torna-o muito presente, ele continua um bocadinho em cada um de nós”.

“Sê tu próprio a mudança que queres ver no Mundo”

Com o Francisco, Alexandre aprendeu que “podemos ter muitos ideais mas ninguém consegue mudar o Mundo, só conseguimos mudar-nos a nós próprios”. Afinal, era o que Mahatma Gandhi já ensinava: “Sê tu próprio a mudança que queres ver no Mundo”. Por isso, Varatojo “não evangelizava ninguém, fazia primeiro e partilhava depois com os outros a sua experiência e motivava-os”.

Um professor de ioga amigo de longa data de Francisco, Carlos Rui Ferreira, conta que ele “nunca gostou de assumir o facto de ser uma pessoa com carisma e liderança, era de uma grande humildade e reserva”. Mas a verdade é que “mudou o paradigma da Macrobiótica em Portugal, que no início era muito rígido e sectário, conseguindo que chegasse a muito mais gente e ganhasse credibilidade”. E isso aconteceu “graças à sua flexibilidade, capacidade de comunicação, tolerância, carisma, capacidade de encaixe, tranquilidade”.

“Conheço imensas pessoas que mudaram de vida por causa do Francisco”, sublinha o professor de ioga, “e ele consegui transformar Portugal num centro da Macrobiótica a nível mundial”. Alexandre Gama confirma esta influência internacional ao recordar que o diretor do IMP “era requisitado por todas as escolas de Macrobiótica internacionais, na Europa, na América e até em cidades tão longínquas como Hong Kong”.

Nuno Markl: “Francisco não impunha a sua visão do mundo a ninguém”

Nuno Markl fez, provavelmente, o melhor texto no Facebook, depois de Francisco ter partido. “Francisco Varatojo não impunha a sua visão das coisas a ninguém. A arrogância não fazia parte da paleta de cores com que pintava o seu mundo e o dos outros”, escreve o radialista e humorista. “Não assumia pose de guru, como assumem outros sem o conhecimento, a substância e a decência que ele tinha. Não agredia nem rebaixava quem dele discordava. Respondia-lhes com calma e humor – e, caramba, como o atacavam, de cada vez que, com a sua sabedoria serena, ele se limitava a dar a sua opinião sobre alimentação em programas de rádio e TV”.

O seu grande amigo e companheiro de mergulho, João Lobo, conta que “Francisco fazia amigos em todos os lugares do mundo que mantinha, pessoas que de imediato percebiam o seu magnetismo, vibravam com a sua energia e se interessavam pelo seu trabalho”.

E guarda para sempre a memória de “uma noite mágica de Lua Cheia e quente em Sesimbra”, em que fizeram o primeiro mergulho noturno. “Nessa noite saltámos para a água e fomos logo envolvidos pelo plâncton luminescente, que dançava à nossa volta como se viajássemos entre as estrêlas”.

Luís Martins Simões, que colaborou com Varatojo em muitas conferências e era também seu amigo, considera que o diretor do Instituto Macrobiótico de Portugal "tinha três caraterísticas únicas: muito conhecimento, muita magia e carisma pessoal e grande intuição, que lhe dava uma ligação natural a outro nível de consciência".

A família de Francisco Varatojo: a mulher, Eugénia, e os filhos Francisco, Joana, Sofia e Marta Conta do Facebook de Francisco Varatojo

A família de Francisco Varatojo: a mulher, Eugénia, e os filhos Francisco, Joana, Sofia e Marta Conta do Facebook de Francisco Varatojo

Francisco já tem uma neta, que não chegou a conhecer. Chama-se Jasmim e nasceu aos oito meses de gestação, por causa da partida prematura do avô. Mas está de boa saúde, tal como a sua mãe, Joana. Quando Jasmim abrir bem os olhos, vou ver se vejo neles os grandes sonhos do avô.