EFEMÉRIDE
Cunhal, Vasco e Eugénio: partiram os três há dez anos
COMUNISTA Álvaro Cunhal morreu no dia 13 de junho de 2005 FOTO RUI OCHOA
No espaço de dois dias, a morte levou o primeiro-ministro do Verão Quente, o ex-secretário geral histórico do PCP, e um poeta que os apreciava
TEXTO LUÍS M. FARIA
Álvaro Cunhal aguentou muitos sacrifícios ao longo da vida, mas o seu maior desgosto estava-lhe reservado para a velhice: o fim da URSS, à qual um dia ele chamara o sol do mundo. O Partido Comunista Português, ainda por cima, tinha inicialmente apoiado o golpe de estado anti-Gorbachev em 1991, um golpe que, ao falhar, gerou a dissolução da entidade criada por Lénine, e em consequência o fim da Guerra Fria.
Cunhal considerou essas evoluções uma tragédia, mas foram elas, de certa forma, que o libertaram. Na última década da sua vida, já era raro ouvir-se dizer mal dele. A cortesia, inteligência e cultura que tinham ficado mais abertamente à vista, acompanhadas por um humor menos carregado de sarcasmo, também ajudavam. Quando a morte o levou aos 91 anos, centenas de milhares de pessoas, comunistas e não comunistas, foram ao seu funeral.
Cunhal partiu a 13 de junho de 2005, no mesmo dia que o poeta Eugénio de Andrade. Dois dias antes, morrera Vasco Gonçalves, aos 83 anos. Os três foram das figuras portuguesas mais importantes, cada um à sua maneira, no período que se seguiu ao 25 de abril. Como sempre que pessoas relacionadas morrem num curto espaço de tempo, surge a suspeita - logo afastada pela racionalidade - de que a coincidência poderá não ter sido inteiramente acidental.
"Força, Força, Companheiro Vasco"
Não é qualquer político, e muito menos um militar, que tem direito a homenagem em verso por parte de um grande poeta. Aconteceu com Vasco Gonçalves, o oficial mais associado ao PREC (Processo Revolucionário Em Curso, o período que se seguiu ao 25 de Abril), e em particular à sua fase radical, terminada a 25 de Novembro de 1975. Eis um excerto do poema:
De tanta palavra que disseste algumas
se perdiam, outras duram ainda, são lume
breve arado ceia de pobre roupa remendada.
Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão
era morada e instrumento de alegria.
"A Vasco Gonçalves" não é uma peça típica do seu autor, que não era de partidos e cuja obra está longe de integrar as correntes da chamada poesia cívica ou interventiva. Num determinado momento, porém, ele achou que devia escrever sobre o "camarada Vasco", cuja transparência de falas o contagiava, como mais tarde explicaria numa entrevista. Embora tivesse algum apoio popular ("Força, força, companheiro Vasco/Nós seremos a muralha de aço") o gonçalvismo durou menos de um ano. Mas os seus efeitos - nacionalizações de empresas, mudanças legislativas (na área laboral e não só) e outras - perdurariam, afetando a economia portuguesa durante muito tempo.
O general retirou-se da vida pública após ser afastado de primeiro-ministro, e faleceu faz hoje exatamente dez anos, aparentemente de uma sincope quando se encontrava numa piscina. Dois dias depois, seguiu-se o poeta.
Eugénio de Andrade construíra ao longo de décadas uma obra de reputação internacional. Natural de uma aldeia no Fundão, vivia no Porto, discretamente empregado nos serviços públicos até à reforma. Com o tempo, tornou-se uma figura emblemática da cidade. Recebia poetas, ou aspirantes a poetas, do país inteiro (tinha algo de excitante descobrir que vinha na lista telefónica do Porto com o seu nome verdadeiro: José Fontinhas) continuando a acrescentar títulos à sua obra, e nalguns casos a refazê-la. Sofria há muito da doença degenerativa que finalmente o matou aos 82 anos.
FOTO RUI OCHOA
De Peniche para Moscovo. Uma evasão espetacular
No mesmo dia que Eugénio, morreu Álvaro Cunhal. Durante mais de meio século foi o líder do Partido Comunista Português, e tinha um estatuto quase lendário entre os políticos portugueses. Nascido a 10 de novembro de 1913 em Coimbra, era filho de um advogado com origens aristocráticas. Estudou Direito em Lisboa e inscreveu-se no PCP em 1931. O início da sua atividade política coincidiu com a criação do Estado Novo. Com Salazar no poder, os opositores, em especial os comunistas, funcionavam na clandestinidade e arriscavam anos de cadeia. O campo do Tarrafal, em Cabo Verde, foi inaugurado em 1935. Nele morreria Bento Gonçalves, o primeiro secretário-geral do PCP, em 1942.
Cunhal, que dirigiu a reorganização do partido, seria o seu sucessor (oficialmente, a partir de 1962). Esteve preso em vários lugares, tendo concluído o seu curso de Direito nessa situação. O desenho e a escrita de romances foram outras atividades que lhe ocuparam a mente. Passaria onze anos na prisão de Peniche até à espetacular evasão que o libertou, juntamente com outros, em 1960. Dessa essa altura até 1974, viveu na URSS, onde nasceu a sua única filha. Figura de referência do comunismo internacional, até o seu visual, com a característica expressão dura rodeada por cabeleira branca e por grossas sobrancelhas pretas, evocava a de líderes como Dmitrov ou Brejnev.
FOTO RUI OCHOA
Um partido hostil à democracia
O 25 de abril trouxe-o de regresso a Portugal. Ficaram famosas as imagens dele ao lado de Mário Soares no meio de uma multidão em festa. Depressa ficou claro, porém, que tinham visões políticas incompatíveis. Nessa altura foi o PCP, aliado a elementos do MFA, que recusou aliar-se ao PS. Cunhal garantiu à jornalista italiana Oriana Fallaci que não haveria democracia parlamentar em Portugal, mas enganou-se, nisso como noutras coisas. Uma vez confirmado como o maior partido português em eleições livres, o PS recusaria sempre aliar-se ao PCP, que via como um partido inimigo hostil à própria democracia implantada.
Cunhal jamais se desviou da linha comunista ortodoxa. Defendia Lenine e até Estaline, apoiou a invasão do Afeganistão (como antes apoiara a da Checoslováquia, em 1968), opôs-se à entrada na CEE, e por aí fora. Ao mesmo tempo, mantinha a velha retórica de inspiração soviética - a famosa "cassete" - onde o ataque aos adversários políticos assumia formas agressivas ou mesmo insultuosas. Mesmo quando a adjetivação bélica ("ofensiva contra os trabalhadores", "fascista", "reacionário", etc) já se encontrava mais do que gasta, o PC e o seu líder continuavam a empregá-la. Até que ponto isso terá afetado a viabilidade politica de um partido que em muitos casos podia ter tido um papel precioso que não teve, por ser o único a defender certas categorias de pessoas que a evolução do país deixara à margem, é uma questão ainda por apurar.
A verdade é que a imagem pública de Cunhal, com o tempo, tornou-se menos polarizadora. A doença grave que teve no final dos anos 80 poderá ter contribuído para isso, mas foi sobretudo o fim da URSS com a derrota final que implicou. Em 1992, ele cedeu o lugar de secretário-geral a Carlos Carvalhas, e começaram a surgir obras sobre ele escritas por não comunistas - ou por ex-membros do PCP como Carlos Brito ("Álvaro Cunhal - Sete Fôlegos do Combatente", ed. Nelson de Matos). Não era invulgar ouvir pessoas de direita a dizer que desprezavam a ideologia mas respeitavam o homem. O sofrimento que ele tivera de aguentar em nome dos seus ideais envergonhava uma democracia com perceção cada vez mais intensa da fraca qualidade dos seus próprios dirigentes, e da corrupção em que o país se atolava.