ENTREVISTA
Diogo Telles Correia, Psiquiatra
“A doença mental é inevitável”
Foto D.R.
É como assistir a uma conversa: nas páginas de “Pensar. Sentir. Viver”, lemos as perguntas de Judite Sousa e recebemos as respostas de Diogo Telles Correia, psiquiatra, psicoterapeuta e docente na Faculdade de Medicina de Lisboa. O resultado é um livro que pinta um quadro acessível sobre o que é a “inevitável” doença mental no século XXI, o tempo do homem apressado, sem tempo para refletir; o tempo da criança agarrada à televisão ou aos livros da escola, hiperativa e imparável; o tempo das depressões e da ansiedade, do assédio no trabalho e dos políticos potencialmente psicopatas. Ao Expresso, o especialista esclarece por e-mail se o mundo atual nos está a pôr (mais) doentes e conta quais são as profissões mais afetadas por um mundo em que parece proibido parar
Texto Mariana Lima Cunha
No prefácio, Judite Sousa descreve um homem do século XX “sofisticado mas triste, ansioso e vazio”. No seu prefácio fala dos “problemas do nosso século”. De que forma essas adversidades nos afetam? Os acontecimentos históricos podem predispor a doença mental?
A doença mental surge de uma complexa interação entre o que é genético e aquilo que o ambiente nos proporciona, as boas e más experiências que vivenciamos no dia-a-dia. Os fatores que induzem stress no nosso quotidiano podem provocar reações psicológicas imediatas, ou algumas que se podem perpetuar por toda a nossa vida. Nos dias que correm vivemos uma época que se caracteriza por aspetos como a instalação da globalização, uma globalização atrativa por todos os benefícios imediatos que traz. No entanto, vários são os problemas ocultos desta globalização. O homem é sujeito continuamente a uma quantidade de informação que força uma incorporação no cérebro humano a uma velocidade frenética. Uma velocidade que não é a velocidade do homem, é a velocidade da máquina... Por outro lado, os estereótipos veiculados por essa corrente de informação que deixamos de dominar são muito desagradáveis a um saudável desenvolvimento mental: o consumismo desenfreado, a superficialidade das relações, o medo de parar para refletir...
Diz que o afastamento da religião também contribuiu para acentuar o vazio existencial. Ela continua a ser “o ópio do povo” ou, pelo menos, um colo?
Do ponto de vista mais sociológico, outras questões pesam sobre o homem do século XXI, como a incerteza de termos chegado a um ponto histórico em que vários grandes ideais pelos quais o homem lutou no século XX mostraram ser insuficientes para alcançar uma civilização equilibrada. Isto aplica-se também às religiões. Na civilização ocidental existe um grande desencanto com as religiões, que caminha a par do desencanto com alguns ideais políticos e económicos que guiaram a mentalidade do século passado. Isto aumenta o vazio existencial do homem. Deixa de haver ideais pelos quais possamos lutar e linhas orientadoras sociais ou religiosas para guiar o nosso percurso.
No livro cita um estudo que prevê que metade da população padecerá de algum tipo de doença mental ao longo da sua vida. É possível estabelecer alguma hierarquia entre as mais fáceis e difíceis de controlar - e alguma vez se curam?
As perturbações psiquiátricas são provocadas por uma interação complexa de fatores ambientais, biológicos e genéticos. Assim, sendo que a cura se define pela eliminação da causa, nestes casos é difícil dizer que a eliminámos. O que acontece é que conseguimos controlar os sintomas do paciente melhorando a sua interação com o ambiente (através da psicoterapia) e tornando mais adequado o substrato biológico que predispõe à patologia (através da medicação). A gravidade da doença psiquiátrica pode ser ditada pelo grau de sofrimento psíquico ou pela capacidade dos pacientes em compreenderem e aceitarem que têm um problema psiquiátrico e que precisam de tratamento.
Há faixas etárias e profissões que registem um elevado número de pacientes com doença mental?
Há dois grupos que, a meu ver, estão mais expostos ao stress: os adultos jovens, que iniciam a sua atividade profissional, e aqueles com mais idade, perto da reforma. Em relação ao primeiro grupo, no contexto da crise económica, o desemprego, a exploração laboral, a enorme competitividade podem precipitar casos de doença mental, como depressões e perturbações de ansiedade graves. Quanto ao segundo grupo, cada vez recebo mais no consultório pessoas com 50-60 anos, que são afetadas pelas restruturações das grandes empresas. Muitas vezes são vítimas de assédio moral no trabalho, com vista a saírem da empresa sem a compensação devida. São situações muito graves e que levam muitas pessoas a depressões que não raramente conduzem ao suicídio se não forem tratadas por um especialista com brevidade.
O mundo neste momento movimenta-se a uma velocidade muito superior à velocidade programada no homem
Diz que crianças e jovens estão mais vulneráveis à ansiedade e que o diagnóstico de hiperatividade se faz com grande facilidade nos dias que correm. O que é que está a falhar?
As crianças começam desde cedo a ser estimuladas por um ritmo alucinante de agir e pensar. Há uma ideia generalizada de que é fundamental que todos eles tenham o tempo completamente ocupado: escola, desporto, música… Chegam a casa, têm de fazer os trabalhos de casa. E, nos escassos momentos em que param, estão ao computador ou à televisão. O pensamento e o corpo são incapazes de travar este assalto. Desenvolvem-se crianças agitadas, impacientes, imparáveis… O diagnóstico de défice de atenção e hiperatividade faz -se com uma facilidade inacreditável. Por outro lado, também podemos pensar se esta patologia psiquiátrica, assim como outras (como a ansiedade e a depressão), não estará a aumentar, fruto do meio de hiperestimulação em que vivemos.
Refere-se no livro que 20% a 30% das pessoas podem experimentar na vida uma perturbação de ansiedade. Temos de corrigir a forma como trabalhamos para evitar quadros de ansiedade graves? É preciso uma mudança de mentalidades?
Vivemos numa sociedade de excesso de informação, no mundo frenético da globalização e da imensa quantidade de conhecimento que temos ao nosso alcance a qualquer momento no nosso telemóvel. O ser humano está assoberbado por um excesso de informação, de atividade, de trabalho intelectual, de exigência…. Deixou de haver tempo para a reflexão, para a autoavaliação. Há uma tendência para que se desenvolvam pessoas aceleradas, que agem maquinalmente e que não se detêm para ponderar sobre aquilo que está bem ou mal na sua vida, aquilo que as bloqueia. O mundo neste momento movimenta-se a uma velocidade muito superior à velocidade programada no homem. A doença mental é inevitável.
Psicopatas não são apenas os assassinos em série: são também as pessoas que no nosso dia a dia violam persistentemente os direitos dos outros
O que quer dizer quando afirma que há casos de políticos e banqueiros que podem sofrer de psicopatia?
A personalidade antissocial é definida como um padrão persistente de violação dos direitos dos outros. Estes indivíduos têm dificuldade em conformar-se com as normas sociais e legais, demonstram pouco remorso pelas consequências do seu comportamento, enganam e manipulam os outros a fim de obter vantagens pessoais ou prazer. Não são empáticos, são insensíveis ao sofrimento dos outros e desprezam os sentimentos e direitos alheios. A personalidade antissocial é comummente referida fora do circulo psiquiátrico como psicopatia ou sociopatia. Por isso, psicopatas não são apenas os assassinos em série: são também as pessoas que no nosso dia a dia violam persistentemente os direitos dos outros, confrontam a lei e prejudicam o próximo sem qualquer sentido de cidadania ou ética.
Segundo o modelo de seleção natural dos nossos traços de personalidade que o mundo atual nos traz, qual será a personalidade recorrente dos tempos modernos?
Alguns autores chamam a atenção para o facto de a sociedade atual estar a favorecer alguns traços de personalidade antissocial. Este dota os indivíduos de uma frieza e insensibilidade face ao sofrimento do outro, que pode ser valorizada no desempenho de alguns cargos superiores e para se alcançar fortuna pessoal. Outros autores defendem que a sociedade poderá estar a favorecer também outros traços, como o de personalidade obsessivo-compulsiva. O perfeccionismo e a necessidade de controlo, traços obsessivos, parecem ser muito favorecidos pela sociedade de competição em que vivemos. No entanto, em excesso, este traço pode favorecer o aparecimento de situações de grande ansiedade ou depressão.
Diz que há regiões em que as doenças mentais e a sua expressão podem ser mais ou menos aceites. Em que ponto está Portugal e quanto trabalho temos pela frente?
Sabe-se, por exemplo, que na cultura africana as pessoas costumam manifestar as suas depressões através de sintomas físicos; na cultura latina pode haver uma exuberância no discurso e nas manifestações emocionais… Por outro lado, também as doenças mentais são mais aceites em determinados pontos do mundo, geralmente mais civilizados, enquanto nos países e zonas menos desenvolvidas são apenas as doenças do corpo que concentram a atenção, sendo as doenças mentais ignoradas, consideradas fraqueza da mente ou muitas vezes até atribuídas a questões mais esotéricas. Em Portugal, assim como em todos os países da comunidade europeia, tem sido feito um esforço muito grande para que se divulgue nos media a importância da doença mental. Infelizmente, pululam também contrainformações sobre a forma de se manifestar e tratar estas doenças que estão erradas e não baseadas na evidência.