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Messi no Benfica? Sim, tudo é possível na época alta do jornalismo de transferências

TRADIÇÃO Verão sem transferências nos jornais é como um jogo sem golos

TRADIÇÃO Verão sem transferências nos jornais é como um jogo sem golos

É científico: mais de metade das notícias sobre transferências de jogadores não se confirmam. E os autogolos vão continuar. Diretores dos jornais defendem-se: “Metade das notícias não se confirmam porque deve ser mais ou menos essa a percentagem de contratações que falham. Acresce a posição dos clubes, que, por norma, mentem”, diz o diretor do jornal “O Jogo”

TEXTO ADRIANO NOBRE e RUI GUSTAVO

A notícia do “Correio da Manhã” deixava pouca margem para dúvidas: os três jogadores chegariam a Alvalade “por empréstimo, após uma megaoperação dos leões no Reino Unido, mediada pelo empresário israelita radicado em Inglaterra, Pini Zahavi”. O acordo estava “praticamente concluído, faltando apenas limar alguns detalhes” logísticos relacionados com a viagem para Lisboa. A apresentação estaria por horas.

Parecia mentira, mas era verdade: segundo o CM, naquele dia, 28 de dezembro de 2009, os jogadores do Tottenham Gareth Bale, Roman Pavlyuchenko e Zoran Tosic estariam prestes a tornarem-se jogadores do Sporting até ao fim dessa época. Não era 1 de abril, mas no dia seguinte percebeu-se que o que parecia verdade, afinal era mentira. Não vieram. Nem Bale, nem Pavlyuchenko, nem Tosic. Nem naquela reabertura de mercado de Inverno, nem no verão seguinte, nem nunca. Pelo menos até hoje.

A notícia em causa ficou para a história recente como um exemplo clássico do “jornalismo de transferências”, uma variante específica do jornalismo desportivo que emerge com particular força nos meses de verão e por altura do Natal, coincidindo com os mercados de transferências de jogadores.

O fenómeno é cíclico e gerou já um histórico de notícias de potenciais transferências que primeiro fizeram sonhar os adeptos e que agora os fazem sorrir. Desde a notícia de 1985 sobre a possível vinda do galês Ian Rush, do Liverpool, para o Benfica, à garantia de que a então jovem promessa brasileira Robinho estaria certa no clube da Luz. Passando pelas negociações do FC Porto com o lateral esquerdo Roberto Carlos ou, mais recentemente, pelo 'facto' de Karim Benzema ter supostamente estado “na mira” do Sporting, tal como o internacional brasileiro Pato.

Mais de metade dos remates ao lado

Pedro Maia, jornalista de a Bola TV, analisou as notícias publicadas pelos três jornais diários desportivos durante o verão do ano passado, em plena época de transferências. Em 845 notícias relacionadas com saídas e entradas de jogadores, 443 estavam erradas. Se se analisar apenas as entradas de jogadores, dois terços das notícias são falsas. Porquê? “A filtragem da informação não é a melhor”, crítica Pedro Maia. “Há muita apetências dos leitores por notícias de transferências, especialmente entradas. E muitas vezes basta que um blogue ou um site sérvio publique uma notícia a dizer que um clube está interessado para que o jornal cite o blogue e publique a notícia sem confirmar nada.”

João Ricardo Pateiro, jornalista da TSF ouvido para a tese de mestrado explicou que “para quem é jornalista é muito aliciante esse período, mas também perigoso porque há muita contrainformação, muito boato, muita gente a tentar usar os jornalistas como veículos para algumas mensagens”. Por outra palavras: valorizar jogadores. Um jogador cobiçado é mais valioso. “É claro que os empresários usam os jornais para valorizar os jogadores. E os clubes também. às vezes, para não estragar um negócio, os jornais aceitam não dar uma notícia em troca de um exclusivo com o presidente ou uma visita ao centro de estágio que mais ninguém vai ter.”

Outra tese de mestrado, de Tatiana Henriques, da Universidade do Minho, que analisou a primeira página dos três desportivos durante todo o ano de 2013, concluiu que só cinco por cento das notícias publicadas são falsas ou especulativas. Mas destas, quase 90 por cento estão relacionadas com transferências. O resto está relacionado com os palpites sobre os 11 iniciais nos grandes jogos.

Ou seja, só quando escrevem sobre transferências é que os jornais desportivos se enganam. Ou são enganados. “As noticias relacionadas com transferências são mais apelativas, atraem mais leitores”, explica Tatiana Henriques. “De cada vez que verifiquei que a notícia não se confirmava, verifiquei as fontes citadas. E o problema é que a regra das duas fontes não é cumprida. Ou é citada uma fonte, ou nenhuma”. A solução? “Confirmar a veracidade da notícia, senão, não publicar.”

Fantasy league

As notícias de jogadores dados como certos, quase certos ou muito próximo de serem reforços dos três grandes permitiriam fazer mais do que um 11. Davam para fazer convocatórias suficientes para encher uma Liga inteira. Ou, melhor, uma Fantasy League.

Alguns exemplos: houve Tomasson, Zenden, Hleb, Fernando Couto ou Kalou certos no Benfica; Rafa, Clasie, Drogba ou Nolito a caminho do FC Porto; e o Sporting supostamente de braços abertos para receber Samaras, Diego, Vargas, Lucas Silva, Sandro ou Belfodil (este último não veio, como todos os outros, mas ao menos deu origem a uma rábula presidencial digna dos Malucos do Riso).

Para a história ficaram ainda folhetins como a eterna venda do defesa central do Sporting Beto ao Real Madrid, que nunca aconteceu, ou o longo namoro deste clube madrileno ao avançado angolano Mantorras, do Benfica. Que também nunca se concretizou. E ainda as voltas e reviravoltas de jogadores que, segundo as notícias, estariam garantidos por um clube e que acabaram a vestir a camisola de outro, como foram os casos de Falcão, Danilo, Alex Sandro, Lisandro Lopez, Mitroglou ou Álvaro Pereira.

Os negócios que falham e os clubes que mentem

O estudo que identificou como falsas cerca de metade das notícias de transferências de jogadores publicadas pelos jornais desportivos merece, no entanto, alguns reparos por parte dos diretores destes títulos. “Devia ser do senso comum que não é fácil contratar um jogador de futebol: metade das notícias não se confirmam porque deve ser mais ou menos essa a percentagem de contratações que falham”, sustenta o diretor do jornal “O Jogo”, José Manuel Ribeiro.

António Magalhães, diretor do “Record”, também sublinha que “muitas das notícias de mercado que são publicadas revelam o interesse de determinado clube num jogador”. E, defende, “manifestar interesse, ter o jogador referenciado, seguir, observar ou abordar não significa ter contratado”. ”Muitas das notícias que provavelmente foram incluídas nessa tese são feitas nesses termos e não publicadas como factos consumados”, adverte.

Pedro Maia aceita a crítica: “É verdade que às vezes as negociações não têm sucesso e que isso foi considerado como se a notícia não se confirmasse. Mas é uma minoria”.

Outro “aspeto relevante” destacado pelo diretor do “Record” é o facto de a realidade digital ter tornado “mais complexa a tarefa de ‘checar’ informações, uma vez que obriga a um trabalho quase permanente de notícias que são divulgadas na ‘net’”.

A isto acresce, segundo José Manuel Ribeiro, a constatação de que “os clubes, por norma, mentem”. “Mentem, primeiro, para proteger o negócio e mentem, depois, porque não admitem aparecer como perdedores, mesmo numa negociação”. Para refutar as conclusões destas teses de mestrado, o diretor de “O Jogo” socorre-se mesmo de uma transferência recente. “O Benfica acaba de anunciar a contratação de Zivkovic, que negou em comunicado há um mês. Está aqui o excerto: “a) Não há negociações com familiares ou empresários de Zivkovic, não há nenhum contrato assinado ou por assinar com o jogador, não há nenhum compromisso até 2020. Não há rigorosamente nada!””.

Além disso, Ribeiro sublinha ainda que “as contratações têm vários patamares” e que isso influencia as notícias que vão sendo produzidas. “Há as simples abordagens, para ter ideia do preço, e essas são múltiplas (nunca existe só um alvo; há sempre uma lista de, pelo menos, três nomes); há as propostas através de empresários; há até as propostas fictícias em nome de outros clubes para ter algum controlo negocial no processo, ou para fabricar uma “vitória” de mercado. Há de tudo, incluindo, claro, notícias realmente falsas, na mesma proporção das que os jornais de todo o género publicam.”

Magalhães também argumenta que muitas negociações noticiadas “não terminam de acordo com as pretensões dos clubes” e que muitas operações dadas por adquiridas “abortam por exigências de última hora ou chumbo nos testes médicos”. Por outro lado, segundo o diretor do “Record”, nos últimos anos “são cada vez mais os interesses em jogo” neste tipo de operações. “Basta constatar que há jogadores que têm os seus ‘passes’ partilhados por diferentes agentes, às vezes até por diferentes clubes, pelo que há informação que é ‘passada’ segundo os interesses de determinadas ‘partes’ e que, ao final do dia, não correspondem ao desfecho do ‘negócio’”, aponta.

Feitas todas estas ressalvas, o diretor de “O Jogo” contesta a pergunta do Expresso sobre se o rácio de notícias incorretas acerca de transferências não desgasta a imagem e credibilidade dos jornais desportivos. “Trabalhos como este fazem passar essa ideia, sim, porque pegam numa análise superficial (e errada) de um tema e partem para conclusões cheias de preconceitos. Parece-me muito mais interessante, e relevante para a sociedade, verificar quantas notícias são manipuladas por partidos políticos e se isso não desgasta muitíssimo mais a credibilidade dos jornais do que uma contratação de um jogador de futebol. As capas que se fizeram das sanções da União Europeia a Portugal talvez fossem um bom começo”.