O POEMA ENSINA A CAIR

MIGUEL MARTINS: NENHUM MEDO DA MORTE, NENHUM MEDO DA VIDA

Escreveu o primeiro livro de poesia no dia em que o pai morreu, em 1995, e depois desse publicou mais vinte. «O facto de eu escrever é meramente acidental e, porventura, até transitório. A reivindicar-me de alguma condição é a condição de leitor», afirma Miguel Martins, pouco depois de ter subido ao palco do teatro A Barraca para ler um poema sobre o inverno de 1969, ano em que nasceu: "foi, para mim, o Inverno dos Invernos. // E não há meio de acabar."

TEXTO RAQUEL MARINHO VÍDEO JOANA BELEZA GRAFISMO VÍDEO JOÃO ROBERTO

As mulheres (digo: algumas mulheres) (digo: algumas mulheres, poucas) (digo: algumas mulheres, poucas, e nenhum homem) acalmam-me, tiram-me das minhas circunstâncias. Com o corpo – sexo, pele, boca, mãos - , com a voz, apenas com a presença. Às mulheres tudo me parece possível.»

Miguel Martins (1969) escreveu o primeiro livro de poesia no dia em que o pai morreu. Chama-se «Seis Poemas para a Morte», data de 1995, e depois desse publicou mais vinte. Não é necessariamente um poeta orgulhoso do curriculum publicado ou sequer do título de poeta uma vez que se distancia da ideia romântica do escritor que sempre quis escrever: «o facto de eu escrever é meramente acidental e, porventura, até transitório. A reivindicar-me de alguma condição é a condição de leitor». Explica que não lê mais poesia do que prosa, que não gosta mais de literatura do que de pintura ou de história ou de música, e que lhe faz confusão, «na relação da maior parte das pessoas que escrevem poesia com a poesia, ela representar um afunilamento de interesses».

Recorda o primeiro contacto com a poesia ainda na primeira infância quando o pai lhe lia Guerra Junqueiro, António Nobre ou José Duro para adormecer, mas desde cedo acumula vários interesses. A antropologia, a história e a filosofia política, «não a política no sentido comezinho, mas a meta política», remontam ao início da adolescência, altura em que começou também a procurar saber mais sobre arqueologia: «o facto de os objetos de estudo serem mortos deve querer dizer alguma coisa». Bom aluno, sorri quando diz que «se houvesse justiça ainda estava no ciclo preparatório» uma vez que «faltava às aulas para ir para a biblioteca ler», e que a aprendizagem em sala de aula era apenas uma das atividades da infância e da adolescência, porventura, aquela a que dava menos importância: «sempre fiz muito desporto, sempre namorei muito e precocemente, e uma coisa de que me orgulho não é a capacidade por esforço mas a capacidade por prazer de diálogo e interesse por pessoas muito diferentes». Sublinha a relação pessoal com os livros em casa, a liberdade para os procurar e ler sem qualquer imposição ou orientação, «exatamente o oposto do que acontece na escola onde antes do brinquedo estão a dar-te as regras do brinquedo». Diz que a poesia, como eventualmente outras artes, não existe apenas sob a forma escrita porque «graças a deus que existem muito mais poetas do que as pessoas que escrevem poemas e, infelizmente, uma quantidade razoável de pessoas que escrevem poemas não são poetas de todo».

Alguns dos que considera poetas são publicados pela editora Tea For One da qual é responsável, e vão, de vez em quando, a sessões de leitura de poesia que organiza semanalmente no bar do teatro A Barraca. Escreve regularmente para a revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian, mantém um blogue, mas explica que o que gosta mesmo é de outros prazeres: «elencando ao acaso, eu adoro tomar banho no mar, adoro sexo, paisagens bonitas, adoro ler, adoro ver o Benfica ganhar, adoro estar com pessoas, e dito isto, não tenho nenhum medo da morte – a morte é uma bênção e a vida também». A comida por ser «a coisa mais sagrada deste mundo» tem direito a mais tempo de conversa e explicação: «adoro cozinhar e isso é que eu faço mesmo bem, cozinhar para o outro. É mesmo uma arte honesta, modesta, e bonita por dar prazer.»

Toca vários instrumentos, piano e guitarra por exemplo, e pertence a uma banda de free jazz chamada A Favola da Medusa, que publicou recentemente um disco.

Já escreveu letras para os fadistas Cuca Roseta e Marco Rodrigues, entre outros, e também já editou livros sobre música mas não se considera melómano: «a minha relação com a música, para o bem e para o mal, é intelectualizada. Leio mais sobre estas coisas do que oiço música».

Tem alguns poetas e romancistas essenciais onde cabem Alberto Velho Nogueira, Manuel da Silva Ramos, Sophia De Mello Breyner, ou David Mourão Ferreira, mas se lhe pedimos para escolher apenas um livro, fala-nos de dois: Moby Dick de Herman Melville que leu «mais de vinte vezes» e o «Livro de Job» do antigo testamento.

A poesia serve para quê?

Primeiramente, haveria que saber qual poesia.

Em qualquer caso, contudo, suponho que “servir”, não sirva para nada. Na melhor das hipóteses, talvez sirva, precisamente, para não servir. Mas é raro.

Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?

“1 4 3 4 2”. É do Melo e Castro.

Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?

Isso não teria dependido de mim mas da minha mãe, não é?

Um bom poema é...

“(…)/ E quando o poema é bom/ não te aperta a mão:/ aperta-te a garganta”.

Ana Hatherly

O que o comove?

Comover-me. Ou seja: essencialmente, seja qual for o pretexto, comovo-me comigo.

Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?

“Naquelas eras corruptas,/ era severa a justiça,/ se as rainhas eram putas,/ e os reis tinham frouxa a piça.” Camilo Castelo Branco.

Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?

“Escreve, quando a gesta das nossas vidas terminar:/ “Cansou-se da fama antes de a alcançar””. Ezra Pound. O dístico intitula-se In Epitaphium e a tradução é minha.

Miguel Martins lê Poema sem título e sugere a Raquel Marinho a leitura de poema de Emanuel Félix

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