FINANÇAS

Afinal, há ou não perdão fiscal? É “uma questão de semântica”

FOTO GONÇALO ROSA DA SILVA

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PS, BE e PCP respondem que não à pergunta. Os fiscalistas dividem-se, mas concordam todos que, em parte, há mesmo um perdão

TEXTO ANA BAPTISTA

É a pergunta do momento: o regime excecional de regularização das dívidas ao Fisco e à Segurança Social que o Governo aprovou quinta-feira em Conselho de Ministros é um perdão fiscal ou não? O Governo diz que não e o Bloco de Esquerda e o PCP também entendem que não é. Os Verdes também concordam, o PSD e o CDS é que dizem que é, não por se oporem - até porque já fizeram o mesmo no passado - mas por criticarem as motivações que levaram o Executivo a tomar esta medida. Mas já lá vamos. É ou não é um perdão fiscal? Sim e não. É tudo uma questão de semântica.

“É um perdão fiscal como foram os outros todos, porque existe perdão de parte ou da totalidade dos juros e das contraordenações e só essas duas parcelas pesam muito no que se deve. Os juros pesam cerca de 20% e as contraordenações pesam, por vezes, 50% ou mais”, diz ao Expresso o fiscalista Tiago Caiado Guerreiro.

Ou seja, “é um perdão fiscal que não é total, apenas parcial, porque há um perdão da dívida fiscal, mas não do imposto”, explica Miguel Torres, sócio responsável pela equipa fiscal da sociedade de advogados Telles Abreu.

Confuso? É simples. As dívidas ao Fisco e à Segurança Social são compostas por duas partes: o imposto em si que não foi pago e mais os juros e as multas que se foram acumulando por não se ter pago dentro do prazo. Com este regime excecional anunciado pelo Governo, os devedores pagam à mesma o imposto, mas não têm de pagar os juros e as multas que lhes foram cobrados por se terem atrasado.

É por isso que para o advogado coordenador do Departamento Fiscal da SRS Advogados, José Pedroso de Melo, este regime excecional não pode ser considerado um perdão fiscal, porque só parte da dívida é que é perdoada. “O termo pode ser usado de forma genérica, mas num sentido restrito não pode ser considerado perdão fiscal porque não é perdoada a dívida, não é uma amnistia”, diz ao Expresso.

FOTO MARCOS BORGA

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“Há uma questão de semântica”, disse à Lusa a assessora da bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados (ex-OTOC), Paula Franco. Mas, acrescenta, “não há dúvida que há aqui um perdão da dívida fiscal, não há perdão do imposto”.

É neste jogo de palavras que o Governo se defende. “Não há qualquer perdão fiscal porque os impostos em dívida são integralmente pagos. Aliás, este programa é efetivamente para pagar as dívidas e não perdoá-las”, disse o porta-voz do PS, João Galamba. O primeiro-ministro, António Costa, também já tinha dito que “não vai existir nenhum perdão fiscal porque quem deve vai ter de pagar aquilo que deve”.

Mas, na verdade, não é bem assim, porque o devedor não paga tudo o que deve - é poupado aos juros e às multas. Parece que voltámos ao início. Mas para o Governo não há mesmo dúvidas. Este é um regime para regularizar dívidas que permite, até 20 de dezembro, pagar ou na totalidade com isenção dos juros e custas ou a prestações durante um período máximo de 150 meses e com uma redução dos juros e custas que será maior quanto maior for o prazo de pagamento.

“Eles dizem que não é perdão fiscal porque não querem assumir uma coisa que criticaram no passado”, considera o sócio responsável pela equipa fiscal da sociedade de advogados Telles Abreu, Miguel Torres, aludindo ao Plano Mateus, aprovado no tempo de Guterres, e ao RERD, aprovado por Passos Coelho em 2013 e altamente contestado por toda a oposição, nomeadamente PS, Bloco e PCP. “O perdão fiscal é um expediente orçamental de vista curta que reforça o sentimento de injustiça e retira credibilidade ao Governo para lançar propostas para o futuro”, afirmava o deputado socialista Eduardo Cabrita, em fevereiro de 2014. E na altura já se sabia que a medida de Passos tinha permitido arrecadar uma receita de 1277 milhões de euros. Na altura, o deputado do PCP Paulo Sá dizia que o perdão fiscal era uma “encenação montada pelo Governo em torno do défice para fazer crer aos portugueses que os sacrifícios valeram a pena, visando mais brutais medidas de austeridade”.

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O Estado deu um passo importante ao aliviar a pressão das dívidas fiscais de muitas empresas relativamente à Segurança Social e à Administração Fiscal António Costa, primeiro-ministro

Agora, Paulo Sá defende que não se trata de um perdão fiscal, mas sim de “um programa que poderá ajudar os pequenos contribuintes, empresas e particulares a regularizarem as suas dívidas”. Apenas pediu - tal como a líder do Bloco, Catarina Martins - que existisse uma “diferente ponderação para os grandes contribuintes (empresas ou particulares), que muitas vezes acumulam dívidas com o objetivo de não as pagar”.

O mesmo pensa o PS. “O Estado deu um passo importante ao aliviar a pressão das dívidas fiscais de muitas empresas relativamente à Segurança Social e à Administração Fiscal”, considera António Costa. E, segundo João Galamba, “o que o Governo pretende fazer com este programa é criar um plano de regularização das dívidas até 11 anos de prestações que permita dar condições às empresas e famílias que hoje não conseguem pagar as suas dívidas”.

Seja como for, “há sempre uma vantagem face a quem pagou a tempo e horas”, comenta o fiscalista José Pedro de Melo. “É um benefício para os incumpridores, porque podem pagar mais tarde sem pagar multa. São medidas altamente prejudicais porque as pessoas podem achar que podem pagar mais tarde e é um tratamento discriminatório.”

Mas é, provavelmente, o preço a pagar para se conseguir ir buscar parte dos 25 mil milhões de euros que estão por cobrar em dívidas ao Fisco e à Segurança Social, segundo o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Rocha Andrade.

Portanto, dentro do Governo, a polémica de ser ou não perdão fiscal já nem se coloca. Até para a oposição, neste caso para o PSD, o problema desta medida é outro.

“Esta é provavelmente a primeira das medidas adicionais que o Governo precisa de enviar para Bruxelas para evitar sanções”, afirmou o deputado do PSD Duarte Pacheco. E acrescentou: “Nós avisámos desde o início que este era um orçamento demasiado otimista. Tínhamos razão. Hoje [quinta-feira] caiu a máscara ao ser aprovada esta medida.”

Alguns dos fiscalistas contactados pelo Expresso concordam com a posição do PSD, mesmo considerando que a medida é boa porque ajuda a recuperar o dinheiro em falta e salvaguarda a viabilidade das empresas. As motivações que levam a tomar estas medidas é que podiam ser mais transparentes, dizem. “Infelizmente, o objetivo não é permitir que as pessoas paguem. A razão real é o equilíbrio orçamental”, considera Tiago Caiado Guerreiro.

Não é por isso de estranhar que o CDS tenha pedido que o documento seja debatido e votado no Parlamento. "Em 2013, quando apresentámos um perdão fiscal parecido, estávamos sob o programa de ajustamento e assumimos que era uma forma de obter mais receita. Agora o Governo diz que o objetivo não é aumentar a receita fiscal deste ano. Sendo assim, a medida pode ser melhorada", disse a deputada centrista, Cecília Meireles.

E até faz duas propostas de alteração. Por um lado, quer que o período para aderir ao perdão fiscal não termine a 20 de dezembro, mas que seja estendido até janeiro, porque dezembro é um mês muito exigente para a tesouraria das empresas. E, por outro, quer que, no caso das empresas, o regime seja pensado para quem mais precisa, ou seja as de pequena e média dimensão. O mesmo que, aliás, pedem o PCP e BE. "Se a questão não é a receita, deve pôr-se um limite ao valor das dívidas". E é aqui que entra a questão da Galp.

FOTO LUÍS BARRA

FOTO LUÍS BARRA

Na quinta-feira, numa comissão parlamentar, a deputada Cecília Meireles perguntou a Rocha Andrade se a dívida que a Galp tinha ao Fisco estava ou não incluída neste regime. O secretário de Estado disse que sim, mas horas depois o Ministério das Finanças esclareceu que não.

“O diploma não se aplica às contribuições extraordinárias, pela sua natureza. Assim, sempre que estejam em causa dívidas referentes a estas contribuições o programa não se aplica, qualquer que seja o contribuinte", disse ao Expresso o Ministério das Finanças.

Ora, a dívida que a Galp tem ao fisco, que já ascende a cerca de 100 milhões de euros, diz respeito à Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE), um imposto pago apenas pelas empresas de energia que foi criado no Orçamento do Estado de 2015 e com o qual a empresa nunca concordou e, por isso, decidiu não pagar e até avançou para tribunal de forma a provar a sua ilegalidade.

O Governo contraria, assim, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Rocha Andrade, que no parlamento disse a Cecília Meireles, sem mencionar o nome da empresa, que “qualquer contribuinte que esteja a litigar com o Fisco e que não tenha feito esse pagamento” pode beneficiar deste regime.

Mas Cecília Meireles ainda tem dúvidas e pediu mais esclarecimentos. De facto, diz o fiscalista José Pedro de Melo, "as contribuições especiais são fiscais e portanto estão incluídas neste regime. A dúvida é saber se essas contribuições, e esta em particular, são ou não um imposto". Miguel Torres diz que "é preciso ler a lei", contudo, "se não tiver uma contrapartida de prestação de um serviço, então é um imposto. Se tiver uma contrapartida por estar a ser prestado um serviço, então é uma taxa que varia consoante o tipo de serviço".

Aliás, para estes dois especialistas, o facto de o Governo dizer que não se inclui neste regime de regularização de dívidas pode ser uma defesa perante o litígio que tem com a Galp. Porque a empresa não pagou a CESE porque a considera um imposto ilegal e, portanto, não a quer pagar nunca a não ser o tribunal não lhe dê razão e seja obrigada a pagar.

Porquê a polémica com Galp e não com outra empresa?

A Galp não é, com toda a certeza, a única empresa a ter dívidas ao fisco, ainda que esta tenha sido deliberada e por contestação e, por isso, sobejamente pública e do conhecimento geral.

O interesse da deputada do CDS em saber se a Galp podia ter direito a este perdão fiscal diz respeito ao facto de o Governo ter decidido que Rocha Andrade não podia intervir em nenhum assunto que envolva esta empresa em particular porque aceitou um convite da mesma para ir a um jogo do Europeu de Futebol, em França.