CIÊNCIA

Tratar o cérebro para curar a visão ganha Prémio Champalimaud

INOVAÇÃO Carol Mason, John Flanagan e Christine Holt, três dos quatro premiados, fotografados hoje, terça-feira, na Fundação Champalimaud FOTO TIAGO MIRANDA

INOVAÇÃO Carol Mason, John Flanagan e Christine Holt, três dos quatro premiados, fotografados hoje, terça-feira, na Fundação Champalimaud FOTO TIAGO MIRANDA

Prémio reconhece trabalhos de pesquisa de quatro cientistas do Reino Unido e dos EUA que são essenciais para a compreensão das relações entre a visão e o cérebro. E que podem abrir as portas a terapias neurológicas para as doenças dos olhos. O Expresso falou com os três premiados que vieram a Portugal receber a distinção

TEXTO VIRGÍLIO AZEVEDO

Christine Holt e John Flanagan (ambos do Reino Unido), e Carol Mason e Carla Shatz (EUA) são os cientistas contemplados com o Prémio António Champalimaud de Visão 2016, o maior do mundo na área da visão, no valor de um milhão de euros.

O prémio reconhece quatro trabalhos de investigação essenciais para a compreensão da relação entre aquilo que vemos e o que se passa no nosso cérebro, e é entregue esta terça-feira a partir das 18h30 na Fundação Champalimaud, em Lisboa. A cerimónia é presidida pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e conta com a presença de Leonor Beleza, presidente da fundação. A pesquisa inovadora dos quatro premiados aumenta as expectativas de que alguns distúrbios da visão possam vir a ser tratados no futuro através de terapias neurológicas.

Para podermos ver, zonas muito concretas do nosso cérebro têm de receber sinais de células específicas nos olhos. As projeções neuronais destas células da retina têm que tomar decisões de navegação no caminho para os destinos concretos no cérebro, uma vez que estes são essenciais para a formação de um mapa preciso do mundo visual.

A nossa visão é muito dependente destas conexões sinápticas entre a retina e os locais correspondentes nos centros visuais superiores do cérebro (sinapses são as ligações entre neurónios). Quando as projeções da retina não são formadas corretamente, a visão formada no cérebro torna-se anormal e a nossa capacidade de ver é muito prejudicada.

Curar a visão com tratamentos neurológicos

A relação que os vencedores do Prémio António Champalimaud de Visão 2016 estabeleceram entre os olhos e o cérebro abre a possibilidade de curar certos distúrbios da visão através de tratamentos neurológicos.

Terapias que atingem o cérebro e a sua capacidade para receber com precisão projeções da retina podem, assim, ser a chave para novos tipos de tratamento e trazer visão para os doentes incapazes devido a conexões sinápticas mal estabelecidas.

Muito do que os cientistas já hoje sabem sobre os mecanismos celulares e moleculares envolvidos no estabelecimento dos padrões de projeções retinianas vêm da investigação desenvolvida pelos quatro premiados pela Fundação Chamapalimaud.

O seu trabalho inovador tem aumentado o conhecimento sobre o sistema visual e, principalmente, sobre a conexão entre os dois órgãos fundamentais responsáveis pela visão: o olho e o cérebro.

BIOLOGIA Carla Shatz, da Universidade de Stanford (EUA), onde dirige o instituto Bio-X, que investiga as grandes questões da biologia, foi a quarta cientista contemplada com o Prémio Champalimaud de Visão FOTO D.R.

BIOLOGIA Carla Shatz, da Universidade de Stanford (EUA), onde dirige o instituto Bio-X, que investiga as grandes questões da biologia, foi a quarta cientista contemplada com o Prémio Champalimaud de Visão FOTO D.R.

Christine Holt, professora e investigadora do Departamento de Fisiologia, Desenvolvimento e Neurociências da Universidade de Cambridge (Reino Unido), explica ao Expresso que a sua investigação pretende contribuir para a compreensão dos mecanismos moleculares e celulares que guiam e mantêm o crescimento do axónio, isto é, a parte do neurónio responsável pela condução dos impulsos elétricos para um local mais distante, como um músculo ou outro neurónio.

Os segredos do quiasma óptico

“Esta compreensão passa por identificar moléculas específicas em locais específicos que demonstrem como os axónios tomam uma decisão para se moverem para fora dos olhos. E um dos locais “é o quiasma ótico”, uma estrutura em forma de X que resulta do encontro de dois nervos óticos. “É aqui que os axónios têm de escolher se vão para o mesmo lado do cérebro ou para o lado oposto do cérebro. Este é um ponto de decisão muito importante e identificámos a molécula que é expressa no quiasmo ótico”.

A investigadora da Universidade de Cambridge tem colaborado nesta área com Carol Mason (investigadora da Universidade de Columbia, EUA), outra das cientistas contemplada com o Prémio Champalimaud de Visão. “Espero que com esta investigação se venham a desenvolver novas terapias clínicas na reparação dos nervos humanos”, antecipa Christine Holt. A ideia é que “se conseguirmos compreender de que modo as conexões são unidas, podemos fazer com que voltem a crescer, com que regenerem”. Com efeito, “há um problema com o sistema nervoso central: os axónios, estes cabos, tendem a não crescer ou a não voltar a crescer muito bem depois de um trauma”.

Um dos outros aspetos do trabalho de Christine Holt é a sobrevivência em doenças neurológicas degenerativas como Alzheimer ou Huntington. “Hoje não sabemos bem como os axónios sobrevivem ao longo da nossa vida, como se desenvolvem e se mantêm. Mas uma das nossas descobertas é que as proteínas produzidas localmente nos axónios são um importante processo para que estes continuem a sobreviver”. Ou seja, “se conhecermos o mecanismo para sobreviver, potencialmente poderemos travar a degeneração dos neurónios”.

Como regenerar os neurónios

Outro dos cientistas premiados pela Fundação Champalimaud, John Flanagan, do Departamento de Biologia Celular da Harvard Medical School (EUA), pretende compreender como as moléculas que sinalizam a comunicação entre células constroem um padrão espacial para a visão, particularmente no desenvolvimento e regeneração das conexões entre neurónios.

A sua equipa no Flanagan Lab está também interessada na regeneração dos axónios. “Quando as conexões no sistema nervoso central dos adultos se perdem devido a um trauma ou a uma doença, a regeneração é mínima, o que cria um grande desafio em termos clínicos”, afirma John Flanagan. Mas a sua equipa fez recentemente uma descoberta: um recetor que pode ser alvo de novas terapêuticas para promover essa regeneração.

E esta regeneração pode ser decisiva para tratar os problemas neurológicos relacionados com a visão. É por isso que outra das premiadas, Carol Mason, investigadora do Departamento de Patologia e Biologia Celular da Universidade de Columbia (EUA), concentra a sua investigação no desenvolvimento do sistema visual, procurando saber como é estabelecido o circuito do olho para o cérebro e o mecanismo molecular que sustenta a função dos axónios. Um dos modelos que tem usado nos seus estudos é o modelo genético dos albinos, que têm falta de pigmento no epitélio (tecido celular) da retina.

Apoio da Organização Mundial de Saúde

O Prémio António Champalimaud de Visão conta com o apoio do programa 2020 – O Direito à Visão, da Organização Mundial de Saúde (OMS). Nos anos ímpar, o prémio reconhece o trabalho desenvolvido no terreno por instituições na prevenção e combate à cegueira e doenças da visão, principalmente nos países em vias de desenvolvimento. Nos anos par, o prémio é atribuído às investigações científicas de grande alcance na área da visão.

O júri é constituído por cientistas de renome internacional e figuras públicas que se têm destacado na luta contra os problemas dos países em desenvolvimento . São eles Alfred Sommer (presidente), Paul Sieving, Jacques Delors, Amartya Sen (Prémio Nobel da Economia), Graça Machel, Carla Shatz, Joshua Sanes, Mark Bear, Gullapalli Rao, José Cunha-Vaz, António Guterres e Susumu Tonegawa (Prémio Nobel da Medicina).