Henrique Monteiro

Chamem-me o que quiserem

Henrique Monteiro

Baleia Azul: fracos de espírito? Todos somos!

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Olhem um casal com filhos. Cada qual tem o seu telemóvel, estão juntos e não comunicam, a não ser com o aparelho. De repente um deles diz: vê lá isto que te mandei. O Isto é um filme, uma fotografia, um desafio. Pode, ou não ser pernicioso. O que é mais estranho nesta sociedade da qual não me ponho de fora, longe disso, é onde chegámos.

Escrevo, atrasado e sem grande novidade sobre a ‘baleia azul’, jogo de automutilação e morte. É fácil culpar a tecnologia e a desatenção dos pais. São problemas reais, que existem e devem ser combatidos. Pediatras e pedopsiquiatras famosos têm-no feito, alguns de forma com a qual concordo em absoluto, outros com algumas variantes que me fazem torcer um pouco o nariz, mas todos com razão no essencial.

O meu ponto, que é muito simples, é este: são as máquinas que nos arrastam para este tipo de vida? Não me parece. Nós criamos estas máquinas porque desejamos este tipo de vida. A automutilação e morte de adolescentes é assunto demasiado sério, mas é algo que sempre existiu. Lembro-me dos filmes experimentais e outros, que ganharam prémios importantes – ‘A Pianista’, de Michael Haneke, um filme francês que ganhou 17 prémios (entre os quais Cannes, Grande Prémio, melhor atriz e melhor ator) e teve 18 nomeações para tantos outros. O filme, de 2001, era chocante, custou-me vê-lo até ao fim, e em certas cenas fechei os olhos. É sobre uma professora de piano especialista em Schubert e Schummann, que não podem ser mais românticos e relaxantes, que é masoquista e automutila-se constantemente, enquanto domina e tenta dominar os seus alunos, um dos quais entra no seu jogo. Isto, tanto quanto me lembro.

Ok. Era arte - e a arte imita a vida. O que significa que os tipos de jogos de submissão masoquistas e mutilantes sempre existiram. Mais, se forem representados com talento, não há barreiras para uma história. Claro que era cinema, tinha avisos parentais, tinha limite de idade.

Afastámo-nos de quem, no geral, nos quer bem. Da família, da religião, da psicanálise, do que quiserem chamar a quem esteja disposto a ouvir-nos uma hora

Mas nós queremos sempre mais comunicação. E chegámos a uma era de comunicação instantânea. Venha de onde vier, a ‘baleia azul’ (dizem que é da Rússia) tem mercado, tem clientes, tem seguidores. E esses seguidores são espíritos fracos que não sabem resistir? Agem por falta de informação, só? Ou agem por perversidade, que existiu, existe e existirá? Levam-na ao extremo da morte porque já não têm com quem partilhar nada, salvo pessoas piores do que elas, que eventualmente têm alguma recompensa, seja material, seja sexual, com o seu desespero e morte?

Sinceramente não faço ideia. Nem tenho a certeza de que estes jovens sejam fracos de espírito ou de entendimento. Não tenho a certeza de quase nada neste jogo, salvo de uma coisa – afastámo-nos de quem, no geral, nos quer bem. Da família, da religião, da psicanálise, do que quiserem chamar a quem esteja disposto a ouvir-nos uma hora e a compreender-nos sem nos julgar.

Pensamo-nos indivíduos que podemos estar isolados do mundo, uma ilha, como John Donne dizia que nenhum homem era. E esse afastamento levou a que construíssemos as máquinas da nossa companhia. É uma espécie de ‘bezerro de ouro’ em versão moderna e sofisticada. A sociedade foi empurrando cada um de nós para este beco, destruindo os laços ou liquidificando-os, como dizia Zygmunt Bauman na modernidade líquida. Somos apenas ilhas dessa liquidificação e fazemos coisas terríveis.

Não me interpretem mal. Seja Mário Cordeiro, seja Daniel Sampaio, todos os profissionais deram excelentes conselhos sobre o assunto. Apenas pretendi recordar que ainda somos nós, os seres humanos, que determinamos os nossos comportamentos. E estes são a consequência de milhares de escolhas que nos pareceram mais simples, mais modernas, mais à la page, mas que tomaram caminhos que jamais levámos em conta.