Boatos

A cobra que veio no cacho de bananas

Esta imagem é a “prova” da existência do monstro de Loch Ness Foto d.r.

Esta imagem é a “prova” da existência do monstro de Loch Ness Foto d.r.

Há 45 anos andava “um leão à solta” na zona de Rio Maior, mais recentemente houve quem jurasse ter visto “um crocodilo na barragem de Castelo do Bode”. Pelo meio correu a “notícia” de que tinha sido encontrada “uma cobra no meio de um cacho de bananas” oriundo da América Latina. Desde que o Expresso noticiou a história do leão, na primeira página da sua primeira edição, têm sido muitos os boatos sobre coisas que nunca aconteceram mas que meio mundo deu como certas

Texto José Cardoso

Já imaginou alguém a entrar numa loja cheia de tralha, a ir até lá ao fundo do corredor à procura de um qualquer artigo e a desaparecer sem ninguém dar por isso, reaparecendo horas depois, abandonado num beco ou num descampado, com dores e uma cicatriz muito recente na zona do abdómen?

Muito provavelmente já lhe contaram uma história destas, que teria acontecido com um conhecido de um conhecido de um conhecido. Tinham-no sequestrado e drogado, para lhe retirarem um rim. É a história da “loja do chinês” usada pelas máfias do mercado negro de órgãos humanos. Só que esta história… nunca aconteceu. É apenas mais um dos boatos, ou lendas (sub)urbanas, que surgem ciclicamente um pouco por todo o lado.

Durante a existência do Expresso, o primeiro mito do género foi o caso que referimos logo na capa da primeira edição – o do leão à solta, um caso que na altura provocou alguma agitação pública. Haveria, na região de Rio Maior, um leão que teria fugido de um circo e que a imprensa diária vinha dando como responsável de um “morticínio” entre o gado da região.

O Expresso contactou o comandante da GNR da zona, que desmentiu andar por lá à solta um tal “corpulento bicho de juba”. Pelo que, acrescentou o mesmo responsável, não se justificava qualquer batida, “a realizar pelos caçadores da zona, que parecem pretender tratar da saúde da alimária com os seus arcabuzes de varar perdizes e cacetes de varrer feiras” – como rezava o artigo que então publicámos na coluna 24 Horas em Notícia, que na altura se situava do lado esquerdo da primeira página.

O “caso da loja do chinês”

O caso do leão de Rio Maior acabou por esmorecer e cair no esquecimento. Mas muitos outros surgiram desde essa altura. Um dos mais falados foi o da acima referida história da loja do chinês. Outro foi o da cobra que teria vindo escondida num cacho de bananas importadas da América Latina por uma rede de hipermercados e que teria mordido um cliente quando este se abastecia do fruto numa grande superfície.

Como surgiu a “notícia”? Influência de filmes como “Aracnofobia”, em que uma tão pequena quanto mortífera aranha viaja acidentalmente num avião de África para os Estados Unidos, onde cria colónias e instala a morte e o medo? Manobra baixa da concorrência? (No “caso da loja do chinês”, o representante dos comerciantes chineses em Portugal falou na altura numa quebra nas vendas da ordem dos 30%). Seja como for, trata-se de uma lenda urbana que não existiu só em Portugal. Em paragens tão longínquas como a Suécia também circulou exatamente a mesma história.

Os ratos-gigante do Convento de Mafra

Há também boatos que perduram no tempo, ficando adormecidos durante anos, para reemergir de quando em vez – o que é cada vez mais fácil, e perigoso, desde que existe um poderoso amplificador-incubadora onde toda a gente pode dizer ou colocar impunemente o que quiser: chama-se redes sociais.

Um destes boatos que têm perdurado é o dos ratos do tamanho de coelhos que existiriam nos subterrâneos do convento de Mafra, onde só se conseguiria entrar acompanhado de soldados do Regimento de Infantaria I (que lá tem o quartel instalado) munidos de lança-chamas.

Há também a história das decalcomanias para crianças com imagens dos seus heróis, aqueles pequenos selos que eram molhados ou humedecidos com a língua para fazer tatuagens provisórias no braço ou pulso – e que estariam impregnados de LSD, para as viciar. Ou a das agulhas de seringa infetadas com sida deixadas em cadeiras dos cinemas. Ou… Ou… O menu é quase infindável.

O siluro de Castelo de Bode

Já no século XXI, quem não se lembra de dois desses boatos? Um deles era sobre uma nova lei que permitia à Brigada de Trânsito da GNR fiscalizar, além do veículo, os CD que os automobilistas teriam no carro. Se fossem cópias, a multa era certa e a viatura até poderia ser apreendida.

Mais recentemente, já no início desta década, houve a história do crocodilo que várias testemunhas juravam ter visto na barragem de Castelo de Bode. A principal teoria para o inesperado aparecimento do sáurio nas calmas águas da barragem que abastece Lisboa era que alguém o teria tido como animal doméstico durante muitos anos e, quando o bicho começou a ficar avantajado, foi largá-lo no rio.

Meses depois, o mito desfez-se: “Peixe-gato com 1,5 metros destrói lenda do crocodilo do Zêzere”, noticiava o jornal “Público” no dia 21 de julho de 2011. Na albufeira da barragem tinha sido encontrado um peixe-gato, ou siluro, uma espécie introduzida há alguns anos nos rios portugueses. Pode atingir grandes proporções e, sendo um predador voraz, a sua presença em rios e albufeiras é preocupante – mas para as outras espécies piscículas, não para animais como cabras que estejam a beber água, como alguém chegou na altura a dizer que tinha visto.

E se não tivesse sido descoberto o siluro? Por quanto tempo iria o boato persistir? Quem não conhece a maior das lendas sobre misteriosas criaturas aquáticas, a do monstro de Loch Ness, que viverá há décadas no lado da Escócia com este nome?

Frio está a congelar peixes?

Alguns dos casos referidos neste artigo são descritos no livro “Mitos urbanos e boatos” (editora A Esfera dos Livros), escrito em 2010 pela jornalista Susana André. Segundo os estudiosos, em 90% dos casos trata-se de coisas más. E, se é certo que não matam, também não moem apenas, como nota no prefácio Miguel Sousa Tavares, ele próprio já várias vezes vítima de boatos – um vírus “sem berço nem filiação conhecidos, sem identidade nem rosto”, que se move “em circuitos paralelos e alastra veloz e virulento”, como refere a autora.

E, embora existam desde que há comunicação, nunca foram tão velozes e virulentos. Como nota Susana André, “na cápsula da Internet teletransportam-se quando, para onde, e à velocidade que querem. Chegam a uma infinidade de destinatários e depressa fazem deles novos remetentes: espalham-se como uma epidemia”.

Com mais boato, menos boato, voltemos à atualidade: sabe que a descida de temperatura da vaga de frio que está a chegar a Portugal foi tanta e tão repentina na zona da Guarda que já congelou milhares de peixes do rio Côa?