ARQUIVOS EXPRESSO

Citações célebres... mas erradas

São tiradas que ficaram para a História, atribuídas aos seus autores famosos. Mas nem tudo o que ficou para a posteridade foi registado exatamente como foi dito...

TEXTO PAULO NOGUEIRA

Um conselho de amigo: quando quiser pavonear-se com a mãozinha de um aforismo, todo o cuidado é pouco. Acontece que o tiro pode sair pela culatra - ou, pior ainda, estropiar o seu pé. Por exemplo (e aproveitando o tiro), em nenhuma das 70 aventuras protagonizadas por Sherlock Holmes e escritas por Conan Doyle figura a frase "Elementar, meu caro Watson". Ela só aparece nas adaptações para TV e cinema - mas o pai da criança nunca teve nada a ver com isso...

Louis Menand, um dos melhores críticos da revista "New Yorker", analisou o "Yale Book of Quotation". O foco dele não eram as citações cuja autoria ou teor foram adulterados, mas por que é que essas coisas acontecem.

Eu, não. Prefiro desmascarar os pseudo-autores e respetivos epigramas. É uma delícia. Acreditam que já existe até um volume intitulado "Misquotation Verifier" (de Ralph Keys), para separar o joio do trigo? Bem, talvez tudo se resuma àquela frase memorável: "Quando a lenda é melhor do que a realidade, imprime-se a lenda", como diriam John Ford e o seu argumentista no clássico "O Homem que Matou o Facínora". Ups, e se não foram eles? Paciência.

Eis os pseudo-epigramáticos divididos por categorias.

Estadistas

LUÍS XIV

LUÍS XIV “O Estado sou eu”, dizem que disse. Não disse FOTO D.R.

LUÍS XIV “O Estado sou eu”, dizem que disse. Não disse FOTO D.R.

Ele nunca disse "O Estado sou eu". Pelo contrário, as palavras do Rei Sol, especificamente escritas para a orientação do seu filho e herdeiro, afirmam exatamente o contrário.

Faz sentido: o controlo de Luís XIV sobre o trono, e mais ainda sobre a até então indócil nobreza, dependia da estabilidade. A última coisa que ele pretendia era que o considerassem arbitrário e fanfarrão.

MARIA ANTONIETA

FOTO D.R.

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Na véspera da Revolução Francesa, ela jamais desdenhou da falta de pão para o povo com este escárnio: "Ora, se não têm pão, que comam brioches!" Não se sabe quem inventou tal história (aposto em Robespierre), mas a melhor contraprova é lógica: claro que, na opinião da rainha, brioches eram demasiado bons para a ralé, esses bimbos sem gosto nenhum.

LINCOLN

FOTO GETTY IMAGES

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E que tal esta linda observação: "Pode enganar-se toda a gente algum tempo e algumas pessoas todo o tempo, mas não se pode enganar toda a gente todo o tempo." Lincoln andava inspirado nesse dia, não? Não. Pois não foi ele o autor da frase, nunca encontrada em nenhuma das suas obras nem nos registos jornalísticos dos seus discursos e campanhas eleitorais, passados a pente fino mil vezes.

THOMAS JEFFERSON

FOTO D.R.

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Foi o avô do neoliberalismo ao sustentar que "o melhor Governo é o que menos governa".

Certo? Errado.

Ele apenas surripiou a sentença do escritor Henry-Thoreau.

HERMANN GOERING

FOTO D.R.

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Do outro lado do espetro, o marechal nazi tão-pouco vociferou a famosa truculência obscurantista: "Quando ouço falar em cultura, puxo da minha pistola!" A fanfarronada pertence à peça "Schlageter", de Hans Johst, encenada em 1933, o ano em que Hitler subiu ao poder.

CHURCHILL

Realmente prometeu "sangue, suor e lágrimas" no seu histórico discurso contra o Führer - mas não da forma como a posteridade o fixou. O que Churchill arengou foi: "Nada tenho a oferecer-lhes a não ser sangue e trabalho, lágrimas e suor." Pode parecer cómico que "trabalho" tenha sido a palavra vaporizada, mas ninguém pode negar que Churchill trabalhou como um mouro contra os nazis. Só não mencionou a origem das palavras: o romance "The Bostonians", de Henry James.

CAVACO SILVA

FOTO RUI OCHOA

FOTO RUI OCHOA

Vamos jogar um bocadinho em casa? Cavaco Silva jamais disse "Nunca me engano e raramente tenho dúvidas", fanfarronice que lhe foi atribuída em 1990. Segundo o próprio, a frase dele foi uns gramas mais modesta: "Nunca tenho dúvidas (em tomar uma decisão) e raramente me engano." Porém, como realçam Ferreira Fernandes e João Ferreira no seu "Frases que Fizeram a História de Portugal", se aquela bravata não é verdadeira, "cola com a ideia que fazemos de Cavaco".

MÁRIO SOARES

FOTO JOSÉ CARLOS CARVALHO

FOTO JOSÉ CARLOS CARVALHO

Quanto à iconoclasta expressão de Mário Soares "Vamos meter o socialismo na gaveta", também acabou desmentida pelo alegado autor.

Quem inventou isso terá sido, segundo Soares, o Partido Comunista, colando-lhe uma declaração que nunca pronunciou.

Ainda que, como disse mais tarde, haja um tempo para tudo.

Desportistas

YOGI BERRA

FOTO REUTERS

FOTO REUTERS

Foi um jogador de basebol americano que ficou célebre pelas suas frases involuntariamente hilariantes - mais ou menos como o produtor de cinema Samuel Goldwyn, autor de tantos disparates engraçados que gerou um neologismo: goldwynisms. Yogi Berra, na fila à porta de um restaurante a abarrotar, resmungou: "Chiça, não admira que ninguém venha aqui! Está sempre cheio!" Pena que nunca tenha saído da boca de Yogi aquele que considero o mais divertido (e também pungente) dos 'berrismos': "Eu realmente jamais disse tudo aquilo que eu disse."

MUHAMMAD ALI

FOTO TOBIAS SCHWARZ/REUTERS

FOTO TOBIAS SCHWARZ/REUTERS

Não proferiu o contundente slogan panfletário que lhe foi atribuído durante a Guerra do Vietname: "Nenhum vietcongue nunca me chamou 'escarumba'." O autor foi o anónimo membro de uma organização pacifista.

Em contrapartida, ao retirar-se do boxe, Ali deixou escapar uma observação universal: "Há coisas mais agradáveis do que bater nas pessoas."

Cientistas

GALILEU GALILEI

FOTO D.R.

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Sinto muito, mas Galileu, depois de dar o braço a torcer sobre o movimento da Terra (para que a Inquisição não lhe torcesse o pescoço), não murmurou a portentosa frase: "Eppur si muove" ("E, contudo, ela move-se"). O lendário desabafo foi cunhado por um escritor francês, um século depois da morte do cientista italiano.

DARWIN

FOTO D.R.

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Adiou anos a fio a edição de "A Origem das Espécies", onde propõe que estas são selecionadas através de variações favoráveis devidas ao acaso. De excelente caráter, e embora acabasse a vida como um afável agnóstico, Charles sofria com o desgosto que causava à mulher, Ema. Esta, uma cristã fervorosa, achava que, por causa das teorias do marido, ambos passariam a Eternidade separados: ela no Céu, com querubins, auréolas e harpas, ele no Inferno, a assar em lume brando com um tridente espetado no rabo.

Mas daí a afirmar que, no leito de morte, renegou a evolução e se tornou um beato vai uma longa distância. E nunca rosnou uma coisa tão rude como a que ouviu do insigne bispo de Oxford: "Mr. Darwin, o senhor pretende descender do macaco por parte de pai ou de mãe?"

Escritores, artistas

INGRID BERGMAN

FOTO GETTY IMAGES

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Não, ela não pede ao pianista: "Play it again, Sam", no filme "Casablanca".

O que ela realmente diz é: "Play it, Sam. Play 'As Time Goes Bye'." Como realça Menand, o duro é que a frase falsa soa bastante mais memorável do que a verdadeira.

Tanto que, anos mais tarde, Woody Allen rodou um filme intitulado "Play it again, Sam" (em português com tradução livre para o "Grande Conquistador"). Acho que aquele "again" vem do facto de, pouco depois, um Bogart na fossa e enfrascado repetir o sado-masoquismo: "Toca, Sam. Se ela pode aguentar, também eu posso."

W.C. FIELDS

FOTO D.R.

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Outro aforista brilhante foi o humorista W.C. Fields, sempre com os copos e refilão. Atribuíram-lhe esta sumarenta maldade, sobre Herodes: "Um tipo que detesta crianças não pode ser completamente mau." Mas o epigrama é do guionista Leo Rosten.

Confesso o óbvio: Certas ou erradas, sou um colecionador de citações. Por falar em coleções e citações, eis uma bastante boa, em forma de anúncio classificado: "Colecionador de coleções compra coleção de coleções." Do humorista brasileiro Jô Soares.

Salvo erro.