EURO 2016
Se não é cauteloso nem louco, o que é Fernando Santos?
FOTO EPA
Este é o exercício impossível: escrever sobre um jogo que ainda não se viu e esperar que continue a fazer sentido quando este acabar
TEXTO PEDRO CANDEIAS ILUSTRAÇÃO DE CAPA TIAGO PEREIRA SANTOS
É chato começar um texto com números se os números sugerem coisas chatas num tema que raramente associamos a chatices e que se chama futebol. Mas o um-a-zero, o um-a-zero, o dois-a-um, o três-a-dois (menos mal), o um-a-zero (voltamos ao mesmo), o um-a-zero, o dois-a-um, o um-igual, o três-a-três e o um-a-zero não dão grandes abébias a quem tem de antecipar algo que acontece daqui a duas horas e que é sobre uma equipa que ganhou ou empatou todos os jogos no regime rés-vés Campo de Ourique.
Da forma como eu vejo as coisas, caro leitor, hoje está à vontade para – e correndo o risco do Ronaldo me desmentir logo à noite (e ele já o fez antes) - desligar a TV durante uma hora, arriscar fazer aquele prato de sushi, refazer aquele prato de sushi, e voltar a ligar o LED mesmo a tempo das decisões. E provavelmente festejar. É que oito dos poucos golos marcados por Portugal de Fernando Santos aconteceram a partir do minuto 60, dois deles após o minuto 90, um no prolongamento.
Há aqui um certo padrão e as coisas padronizadas são previsíveis e a previsibilidade confunde-se com o tédio e o tédio não rima com desporto. Torto rima, mas como já nem Fernando Santos responde torto, acabo de perceber que fiquei sem a piada fácil para fechar este parágrafo e começar o seguinte.
O melhor teria sido começar pelo sujeito que dá o título a este texto, sendo que título é a palavra-chave para o definir, porque não me lembro de um selecionador se atirar para fora do pé desta forma: “O objetivo é chegar à final do Europeu e ganhar”. Para o tipo cauteloso que Fernando Santos diz ser, arriscar uma frase que fará ricochete se tudo correr mal tem a sua dose de loucura; só que ele também já nos disse que maluco não é quando Portugal podia ter tentado acelerar para a vitória com a Hungria e ele pediu aos jogadores que travassem a marcha.
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Portanto, se não é cauteloso e não é louco, o que é Fernando Santos?
Ele dir-nos-ia que é equilibrado e prático e eu acrescentaria que é descomplexado, descomplicado e desempoeirado. Porque de treinadores do meio-termo e resultadistas já tivemos a nossa dose, como Paulo Bento e Carlos Queiroz, com os discursos técnicos e táticos, de mal com a imprensa, tensos com alguns jogadores, à caça de bufos ou de polvos. Nenhum deles, já percebeu, teve a margem de manobra mediática nem o benefício da dúvida que Fernando Santos tem. E porquê? Vamos lá entrar no campo da subjetividade.
Digamos que Fernando Santos nos dá aquilo que nós, portugueses, tanto gostamos. O contacto, a atenção, um raspanete aqui e um colo acolá, ditados e adágios, expressões populares, enfim, um rodízio de portugalidade que nos faz sentir próximos dele e da seleção. Do sítio onde estou ao lugar onde eles estão, em Marcoussis, percebe-se que ele não tem problemas em discutir táticas e opções, tem sempre aquele sorriso maroto e a punch line e o soundbite (desculpe pelos anglicismos, Engº) na manga que nos fazem gostar dele. Fernando Santos traduz do futebolês para o português com a mesma facilidade com que faz retroversões técnico-táticas da basculação. Vejamos:
“Andamos com galo”;
“Nós somos favoritos contra a Polónia? Isso é a canção do bandido e eu não vou nem em cantigas nem em cantilenas”;
“Uma coisa é jogar futebol e outra é jogar à bola”;
“Não se muda a agulha de um dia para o outro e o futebol não passa por varinhas mágicas”
E a minha favorita até agora:
“Não consigo entender este lirismo no futebol. No futebol não há bonito nem feio, porque bonitos e feios são os homens ou as mulheres. No futebol há o bem e o mal, ou se joga bem ou mal. Não me importo de ser feio, porque feio já eu sou por natureza”
Quem feio ama, bonito lhe parece, certo? E Fernando Santos também é capaz do contrário, de descer ao nível dos jornalistas ou de quem lhe faz perguntas, e discutir futebol.
- “Rakitic fazia sempre um movimento muito claro e complicado — saía para o lado contrário da bola, permitindo que o Brozovic, do lado direito, entrasse para dentro de modo a que o Srna utilizasse sistematicamente o corredor. Era um movimento muito clássico deles. Isto levava a que as equipas, nos movimentos de basculação, se esquecessem um bocadinho do Rakitic nas costas”
Já agora, o significado de bascular: fazer rodar sobre um eixo horizontal, baixando uma das extremidades para elevar a outra. Só para entendidos.
Ora, quem é que não se consegue identificar com um tipo destes? Quero acreditar que este estilo e estas segurança e resolução, aprendidas a levar xaropadas da imprensa grega, também funcionam com os jogadores. Afinal de contas, Fernando Santos foi o homem que fez tábua rasa de tudo o que se passara antes chamando Tiago, Ricardo Carvalho e até Bosingwa, fazendo de Quaresma um jogador de equipa, que não se importa de estar no banco – em 2012, no Euro, eu vi o que era Quaresma e não tem nada a ver com o que Quaresma é hoje.
Em vez de ser autoritário e controlador, o Engenheiro dá-lhes folgas entre jogos, porque sabe que atletas deste nível serão responsáveis mesmo sem os-olhos-que-tudo-veem por perto.
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Trata-os bem mas não trata todos por igual, porque Ronaldo tem um estatuto de marciano e aos marcianos não se aplicam leis terrestres, mas o importante é que os humanos encaixem isto. Aparentemente, é um encaixe perfeito, já que os outros correm como loucos para que o CR7 não tenha de se mexer muito, e ande por ali, perto da grande área, a fazer o que ninguém faz tanto e tão bem: marcar golos.
Se daqui a pouco isto acontecer, olhe, caro leitor, lá teremos de continuar a seguir Portugal. Não é uma chatice?