Opinião
Ricardo Costarcosta@expresso.impresa.pt
Porque Moonlight merece muito ser visto e ter um Óscar
Há poucos anos, filmes como “Moonlight” ou “Manchester by the Sea” dificilmente chegariam a uma noite de Óscares. Fariam o circuito meritório dos festivais de Sundance ou Toronto, seriam justamente aclamados pela crítica e ter algum sucesso de bilheteira na Europa. Cumpririam o propósito dos seus autores, produtores, realizadores, distribuidores e demais envolvidos, o de fazerem obras cinematográficas excecionais sem necessidade de grande sucesso comercial, com argumentos estupendos e sem cedências a qualquer tendência de consumo.
Nos últimos anos, os Óscares sofreram uma mudança radical. Nas últimas edições não houve quase filmes de grandes estúdios a levar a estatueta mais importante. Os mega estúdios concentraram os esforços em superproduções, de valores orçamentais brutais, com argumentos bons mas previsíveis. Com esta aposta de monocultura correm alguns riscos - um filme que falha é imediatamente um desastre financeiro -, mas têm uma enorme segurança: basta que um dois filmes corram muito bem a nível global para que tudo continue a funcionar e a ganhar mais dinheiro.
Este movimento, que fez transferir para a televisão grande parte do talento artístico e do risco criativo (a benefício das magníficas séries que hoje podemos ver), teve um efeito colateral no cinema. O chamado cinema indie ou de autor ficou com caminho aberto para obter uma justa notoriedade a que quase nunca tinha acesso.
Basta ver a lista dos filmes que venceram os Óscares de 2010, onde só um - “Argo” - é de uma grande produtora. Os outros são “Doze anos escravo”, “Birdman”, “O Artista”, “O Discurso do Rei” e “Spotlight”. Nenhum destes filmes teria ganho o Óscar de melhor filme no período em que os grandes estúdios apostavam em várias “camadas” de produção e corriam riscos artísticos.
Não é por acaso que “Manchester by the Sea” pertence à Amazon e o melhor documentário é da Netflix. Já nos Emmys, estas novas produtoras/distribuidoras começaram a ganhar espaço aos estúdios e às televisões tradicionais. Arriscam mais, diversificam, jogam em produtos seguros mas dão enorme espaço de criatividade artística.
“Moonlight” não nasceu na era Trump nem é um filme político. A peça de teatro tem quase dez anos e o argumento foi escrito em 2015, num período em que o realizador Barry Jenkins esteve a viver em quase clausura em Bruxelas. Jenkins não o escreveu para responder à ausência de negros dos Óscares em 2016 ou ao ódio racial de parte da base de apoio a Donald Trump.
Fê-lo por ter dado de caras com um texto genial, que tinha muito a ver com a sua infância e que retratava uma Miami nunca vista no cinema. O que Jenkins fez foi um portento visual, um filme espantosamente bonito, de uma estranha densidade, em que as imagens se sobrepõem à escassez de diálogos. É um filme raro, um poema de luz e com opções de filmagem, edição e de banda sonora nada fáceis. E é por isso que é esmagador.
Ainda bem que o filme acabou por cumprir um propósito político para o qual não nasceu. A arte pode conseguir isso pela sua própria natureza ou pelas circunstâncias em que ocorre a sua exibição. “Moonlight” é um filme sem par, que aproveitou o momentum para ter um reconhecimento internacional dificilmente previsível. Mas está a ter o reconhecimento merecido. É melhor que “La La Land” - que tem uma realização incrivelmente difícil - ou que o esmagador “Manchester by the sea”. Supera o primeiro pela densidade e o segundo pela qualidade artística. E supera os dois por ser o cinema na sua essência, uma obra visualmente magnífica, perturbadora e que ninguém esquece. Não por ter os melhores atores, os melhores diálogos ou o argumento mais espetacular, mas porque é o melhor filme do ano.