
Como descreverias a tua experiência de ser mãe quando o teu filho te pergunta todos os dias se vamos morrer hoje?
Foto Bassam Khabieh/ Reuters
“Tenho frio, tenho frio”, dizia-lhe o filho e Bereen Hassoun sentia o coração gelar-lhe. Não tinha como aquecê-lo nem como alimentá-lo nesse abrigo em Ghouta Oriental, onde as mães lavavam as fraldas de pano no mesmo sítio onde lavavam os pratos sujos e as mãos e de onde bebiam água. Este foi um testemunho publicado originalmente no site “Global Voices” e que traduzimos porque há palavras que todos devemos ler
Texto Bereen Hassoun, mãe e enfermeira em Ghouta Oriental (testemunho traduzido por Helena Bento, Marta Gonçalves e Soraia Pires)
Há cerca de um mês, os bombardeamentos intensificaram-se e por isso eu e a minha família tivemos de deixar a casa onde vivíamos e ir para um abrigo, em Harasta [cidade em Ghouta Oriental]. Tratava-se de um espaço aberto, numa cave, sem quaisquer divisões. Viviam ali 50 famílias, incluindo 170 mulheres e crianças, todas assustadas e com fome. Os vidros das janelas estavam partidos por causa dos bombardeamentos intensos. O frio era brutal, penetrava-nos nos ossos, já fazia parte de nós. Por mais que tentássemos, não conseguíamos aquecer-nos. Mesmo quando usava cinco camisolas e três pares de calças e me enfiava debaixo dos cobertores com o meu filho, sentia frio. Husam, o meu filho, com três anos, passava o tempo todo a sussurrar-me ao ouvido “tenho frio, tenho frio”. Ao ouvir isto, o meu coração gelava ainda mais. A água estava sempre muito suja e não tinha fraldas para o meu filho. Cada uma custava cerca de 300 libras sírias [cerca de 50 cêntimos]. Em vez disso, usava um pano coberto por um saco de plástico que servia para guardar o pão. Não havia água suficiente para nós, mães, lavarmos as fraldas de pano. Costumávamos lavá-las no mesmo sítio onde lavávamos os pratos sujos e as mãos e de onde bebíamos água. Os nossos filhos tinham asma e infeções nos olhos. Se alguma criança ficasse doente, todas ficavam. Esta era a ‘nossa vida normal’ no cerco mas a nossa outra desgraça foram os bombardeamentos.
Vivia no bairro de Al-Tibbiya, onde estava o hospital de campanha, que era frequentemente alvo de ataques. Trabalhava como enfermeira, perto do meu marido, que era médico. O abrigo ficava por perto e por isso levávamos para lá alguns feridos, os menos graves, quando o hospital ficava sobrelotado. Tratávamos dos feridos à frente das nossas crianças. Talvez tenha sido um erro, mas não tínhamos outra hipótese.
Como descreverias a experiência de ser mãe e todos os dias sentir medo de que algo pudesse acontecer ao teu filho e ao teu marido, medo de que o teu filho pudesse ficar órfão caso me acontecesse alguma coisa? Como descreverias a tua experiência de ser mãe quando o teu filho te pergunta todos os dias “vamos morrer hoje?”, “porque é que eles nos estão a bombardear?”? O que é ser mãe se nem sequer consegues comprar uma bolacha ou garantir as necessidades básicas do teu filho, ou porque é tudo muito caro ou difícil de encontrar ou não existe de todo por causa do cerco? Quando comia silenciosamente sentia que estava a roubar. Comíamos em silêncio enquanto as crianças dormiam e só comíamos porque não conseguíamos aguentar mais a fome. Como é que vives quando tens de mentir ao próprio filho e convencê-lo de que os rabanetes são, na verdade, maçãs?
Depois de um bombardeamento, não consegui encontrar o meu filho. Comecei a procurá-lo desesperadamente: “Hussam, Hussam, Hussam”. Ele estava, na verdade, agarrado a mim, mas com o pânico não o reconheci
Houve um dia em que um avião nos bombardeou e o meu filho traquina correu rapidamente até mim, assustado de morte, repetindo a sua oração: “Meu Deus, protege por favor os meus pais. Deus, por favor, protege os meus pais”. É estranho estar a brincar e, de repente, ir para um abrigo aterrorizado, a chorar imenso, para depois sair e voltar a brincar. As crianças brincam durante os momentos de silêncio e ficam assustados com o som de aviões que se aproximam e choram enquanto somos bombardeados. Depois voltam para as brincadeiras quando o silêncio retorna.
Não podíamos abandonar o abrigo porque o regime poderia bombardear Harasta a qualquer momento. Os ataques aéreos eram muito intensos, constantes. As mulheres nunca deixavam o abrigo exceto enquanto cozinhavam para os filhos.
Foi assim que perdemos Umm Muhammad, a minha vizinha de 28 anos.
Num dia de muitos bombardeamentos, estávamos sentados na cave abraçadas aos nossos filhos. Abraçadas enquanto rezávamos, pedindo a Deus para nos proteger. Primeiro, o avião atingiu uma zona distante de nós. Lembro-me de olhar para todos os cantos daquela cave e ver mães a acalmarem as crianças, enquanto rezavam e choravam. Tínhamos medo porque esperávamos sempre a morte. A primeira bomba destruiu o edifício acima de nós. Depois, os Capacetes Brancos vieram e salvaram-nos.
Não conseguíamos encontrar as crianças no meio da destruição. O meu filho esteve perto de mim o dia todos mas, depois do primeiro bombardeamento, começou a reclamar porque queria ir brincar com os amigos. Deixei-o ir. Depois, no segundo bombardeamento, já não o consegui encontrar.
Comecei a procurá-lo desesperadamente no meio das outras crianças: “Hussam, Hussam, Hussam!” Ele estava, na verdade, agarrado a mim, mas com o pânico não o reconheci. Uns minutos depois, o médico perguntou-nos: “Pode tomar conta desta criança? A mãe dele morreu”.
Olhei para ele e percebi que era o filho de Umm Mohammad. A minha vizinha, Umm Mohammad, que tinha estado sentada ao meu lado na cave há uns minutos. Saíra do abrigo com os filhos e levou-os a casa para lhes dar comida. Foi nesse momento que a bomba caiu. Chorámos por Umm Muhammad e também por termos medo. Imaginámos se o nosso destino seria o mesmo e se os nossos filhos também ficariam sem mãe.
Será que sabem que nós existimos?
Discutíamos por causa do comportamento dos nossos filhos, pelo barulho que eles faziam. Às vezes desabafávamos umas com as outras sobre a nossa raiva, desespero e o que sentíamos por estarmos sufocadas naquela cave. No início, costumava ficar surpreendida com o caos que se instalava quando chegava comida ao abrigo, mas depois tornei-me exatamente como eles, talvez ainda pior, porque queria simplesmente alimentar o meu filho.
Entretanto, uma das mães montou uma pequena banca em que vendia doces e guloseimas para as crianças se sentirem vivas. Se um de nós morresse, continuávamos a comprar o mesmo número de doces como homenagem.
Uma grande parte das nossas noites era passada a imaginar. Não era uma imaginação estranha ou uma fantasia. Imaginávamos qual seria a resposta às nossas perguntas: voltaremos a ver os nossos pais? Os nossos pais vão voltar a ver os nossos filhos? Os nossos filhos vão poder brincar com outras crianças outra vez? Será que alguma vez vão saber o que são bananas?
Uma vez perguntei a um dos meus vizinhos: “Estamos mesmo vivos? Será que os outros sabem que existimos e que estamos vivos dentro desta cave?”.